A julgar certa a premissa evolucionária do
kardecismo, não só o egoísmo será superado, outrossim, naturalmente atingido
pela humanidade, um tipo comunismo. Não há nome mais correto para o que se lê
no best-seller de Kardec: “Bem-aventurados os que são brandos, porque possuirão
a Terra (...) Por aquelas palavras quis dizer [Jesus] que até agora os bens da
Terra são açambarcados pelos violentos, em prejuízo dos que são brandos e
pacíficos; que a estes faltam muitas vezes o necessário, ao passo que outros
têm o supérfluo. [Jesus] Promete que justiça lhes será feita, assim na Terra
como no céu, porque serão chamados filhos de Deus. Quando a Humanidade se
submeter à lei de amor e de caridade, deixará de haver egoísmo; o fraco e o
pacífico já não serão explorados, nem esmagados pelo forte e pelo violento. Tal
a condição da Terra, quando, de acordo com a lei do progresso e a promessa de
Jesus, se houver tornado mundo ditoso, por efeito do afastamento dos maus”.[xlvi] Ali, por fim, Kardec satisfaz plenamente Reza
Aslan: “(...) o reino de Jesus — o Reino de Deus — era bem deste mundo”.[xlvii]
Afora os conteúdos espirituais, seria esse um
horizonte afim de E. Bernstein, que pretendeu revisar Marx após a morte de
Engels e, disso, resultou a ideia de que a revolução proletária seria um
conceito anacrônico, porque a própria evolução da sociedade burguesa, por meio
de reformas, progressivamente conduziria ao socialismo, sem rupturas, e do
socialismo, ao comunismo. Justiça na Terra sem afrontas à do Céu. Darma
praticado, karma zerado. Amém. Razão assiste, pois, a outro historiador
estadunidense, J. W. Monroe: “(...) esta fusão da metafísica
romântico-socialista e da epistemologia positivista era talvez a contribuição
intelectual mais original de Kardec. Politicamente, O Livro dos Espíritos tinha
uma inspiração no socialismo romântico, mas dispensou sua mensagem
explicitamente revolucionária”.[xlviii] Em
nenhum passo desse clássico essa inspiração mais transparece que nestes
dizeres: “(...) somente pode considerar-se a mais civilizada, na legítima
acepção do termo, a nação onde exista menos egoísmo, menos cobiça e menos
orgulho; onde os hábitos sejam mais intelectuais e morais do que materiais;
onde a inteligência se puder desenvolver com maior liberdade; onde haja mais
bondade, boa-fé, benevolência e generosidade recíprocas; onde menos enraizados
se mostrem os preconceitos de casta e de nascimento, por isso que tais
preconceitos são incompatíveis com o verdadeiro amor do próximo; onde as leis
nenhum privilégio consagrem e sejam as mesmas, assim para o último, como para o
primeiro; onde com menos parcialidade se exerça a justiça; onde o fraco
encontre sempre amparo contra o forte; onde a vida do homem, suas crenças e
opiniões sejam melhormente respeitadas; onde exista menor número de
desgraçados; enfim, onde todo homem de boa vontade esteja certo de lhe não
faltar o necessário”.[xlix] Quem sabe, se
levarmos a sério Lacordaire: “Do vosso patrimônio, como do vosso trabalho, só
uma coisa vos é permitido tirar em vosso proveito: o necessário; o resto cabe
aos pobres. Eis a lei. (...) Velai pelo futuro de vossos filhos; preocupai-vos
em lhes preparar dias calmos e tranquilos em meio a esse vale de lágrimas; mas
jamais lhes ensineis a viver egoisticamente e a olhar como deles o que é de todos”.[l]
Referências
[xlvi] O
Evangelho segundo o Espiritismo, IX, 5.
[xlvii] Zelota.
A vida e a época de Jesus de Nazaré. 11. Quem vós dizeis que eu sou? Trad.:
Marlene Suano. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
[xlviii] Crossing Over: Allan Kardec
and the Transnationalization of Modern Spiritualism. Obs.: Moroe lista na matriz
kardeciana do espiritismo a influência de quarto elementos que a distinguem da
estadunidense e da inglesa: “(...) o legado do pensamento visionário
cosmológico e moral derivado dos escritores socialistas românticos franceses
tais como Charles Fourier, Pierre Leroux e Henri Reynaud; uma concepção
teleológica do desenvolvimento histórico e o valor do empirismo baseado no
positivismo de Auguste Comte; um ambiente religioso ortodoxo dominado pela
Igreja católica, que mantinha ligações próximas com o Estado; e um governo
autoritário que impunha controles rigorosos sobre o discurso público,
especialmente em matérias concernentes à política, à economia e à religião”.
[xlix]
O Livro dos Espíritos, 793.
[l] Revista
Espírita. Ago/1865. A Chave do Céu. Lacordaire (espírito). Por Allan Kardec.
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