Esse tema daria e, quem sabe, ainda dará um
livro, por sua extensão e necessário aprofundamento. Mas quero deixar aqui
algumas breves reflexões, que anunciem próximos desdobramentos.
Minha relação com a Psicanálise, que já havia
folheado superficialmente, era de uma ambígua curiosidade, com rejeições
pré-concebidas. Quando fiz meu trabalho na USP sobre Pestalozzi, deparei-me com
uma tese de doutorado, feita na Alemanha, que sugeria a interessante ideia de
que o educador suíço tinha intuído alguns conceitos que seriam depois propostos
por Freud. Coloquei isso na dissertação de mestrado, depois publicada em meu
livro Pestalozzi, Educação e Ética, e ficou por isso mesmo.
A corrente inaugurada por Freud me afastava por
seu confesso materialismo e eu, como espírita e, portanto, espiritualista,
considerava que suas premissas positivistas do século XIX levariam
necessariamente a um entendimento equivocado do inconsciente. E mais, talvez
mais do que o materialismo, me desencantava o pessimismo de Freud em relação ao
ser humano. Esse traço de suas obras, sobretudo das últimas, como O Mal-estar
da Civilização, é admitido mesmo por seus seguidores. Para ele, as forças
destrutivas do ser humano poderiam acabar com o processo civilizatório e até
com a espécie humana.
Agora, entretanto, em plena maturidade física e
intelectual, fui me debruçar mais seriamente sobre a Psicanálise, num excelente
curso de formação em Campinas-SP e em leituras mais aprofundadas de Freud em
alemão e de alguns de seus mais interessantes discípulos, como Melanie Klein,
Winnicott e Bion. E confesso que estou apaixonada e com diversos clarões
mentais, prontos a gerarem reflexões, escritos e práticas.
O conceito de Id em Freud, com suas pulsões de
vida e de morte, com sua dimensão de sem tempo, sem lógica, sem moral e sem
palavras, é uma ferramenta de entendimento para abordarmos as obscuridades do
comportamento humano, com suas perversões, violências, impulsos irracionais e destrutivos.
A ideia que está presente nos autores
espiritualistas, como Platão, Comenius, Rousseau e Pestalozzi, de que temos uma
divindade imanente – coisa totalmente rejeitada pela Psicanálise – não exclui a
presença desse inconsciente pulsional, de desejos inconfessáveis pela moral
estabelecida pela sociedade e que corresponde bastante ao estado natural de
Pestalozzi, na sua teoria dos três estados.
O que essa descoberta do Id nos faz, mesmo que
estejamos convencidos da nossa divindade em potencial, é nos jogar no chão da
realidade de nós mesmos e da humanidade em geral. Isso nos dá uma espécie de
humildade e nos faz solidários com o pior criminoso ou o mais pervertido dos
seres humanos. Porque os desejos irracionais, perturbadores, inconfessáveis
podem estar tanto em nós quanto naqueles que lhes dão vazão. Para a teoria de
Freud, aqueles que dão vazão, contrariando os necessários limites sociais, não
estruturaram devidamente um ego saudável e um superego forte para conter dentro
dos domínios dos sonhos – onde matar por exemplo, é permitido – aquilo que não
pode ser posto em prática na civilização.
Esse dado é muito importante para nos
vacinarmos contra o moralismo hipócrita que muitas pessoas religiosas adotam
como forma de comportamento. Escamoteiam elas esse lado obscuro, passando a um
julgamento altivo daqueles que manifestam esses impulsos, que todos nós temos –
e reprimem seus desejos, mas eles não estão anulados, apenas disfarçados.
Para as propostas espiritualistas, a
transcendência é o acordar da divindade interior, para que não queiramos apenas
prazeres que contentem nosso Id, mas felicidade que satisfaça nossa alma. Num
certo sentido, é o que Freud chamou de sublimação, embora ele não reconhecesse
essa dimensão do Espírito. Mas seria possível, para ele, transformar essa
energia pulsional em cultura e civilização, em produção intelectual ou
artística.
O que considero interessante aqui é que aquilo
mesmo que faz da teoria psicanalítica algo um tanto pessimista – quase sem
redenção para o ser humano, que sempre ficará aprisionado entre os desejos do
Id e a repressão do Superego – é o que a torna humanista, no sentido de
compreender a fragilidade humana e acolhê-la sem julgamento.
Alguém que se torna abusivo, agressivo,
destrutivo ou perverso não tem uma natureza diversa do santo. Seu psiquismo não
foi bem constituído, quebrou-se no caminho, não se fez de maneira adequada. E o
psiquismo de algum suposto santo pode ser de alguém que está escondendo muita
coisa. A psicanálise assim pode nos levar a menos julgamento dos que “caem” e
nos prover de mais desconfiança dos que são idolatrados (ou idealizados?).
Isso nos lembra quem? Um outro judeu, conhecido
como Jesus: “não julgueis para não serdes julgados”. “Não me chameis de bom,
pois só Deus é bom.”
Mas uma visão espiritualista, por outro lado,
nos faz ver que há verdadeiros “santos”, no sentido não sobre-humano, mas da
transcendência real, da bondade sincera, do amor aniversal e não apenas na
repressão superficial. Afinal, o mesmo mestre judeu falava: “Vós sois deuses!”
Ele mesmo foi alguém que realizou plenamente a divindade: “eu e o Pai somos
um!”
Outra coisa que fala à minha alma de educadora
é que na Psicanálise está a maior fonte de observações e evidências – e é uma
ciência que vem se desenvolvendo e aprofundando há cem anos – do quanto a
primeira infância é determinante para a saúde psíquica do indivíduo, do quanto
as funções materna e paterna são vitais para o desenvolvimento do psiquismo da
criança. A maternagem, o afeto, o investimento psíquico do ser em formação,
garantem uma vida com muito menos possibilidades de adoecimento psíquico e
comportamentos antissociais. E considero que a maior contribuição nesse setor é
de Winnicott, que tem um diálogo incrível e profundo (que pretendo demonstrar num
futuro breve) com Pestalozzi.
Esse encontro, portanto, com a Psicanálise, me
fez mais realista, mais pé no chão e mais fincada naquilo que defendo como uma
educação amorosa e presente.
Mas há uma discrepância entre a Psicanálise e
os clássicos da Educação com que trabalho, no desdobramento do processo
educativo como um todo. Para Freud, o superego – que é o domínio da lei, das
regras sociais, dos pais introjetados, é a única fonte da moralidade humana. Ou
seja, estamos em permanente contradição interna, entre nosso Id desejante e
nosso Superego repressor. Cabe ao coitado do Ego administrar a situação, sempre
incerta e dolorosa – por isso somos todos neuróticos. Ora, a educação tem, portanto,
uma função meramente disciplinadora – a partir da castração, ante o complexo de
Édipo. No início, afeto, investimento psíquico, para sua majestade, o bebê.
Mais adiante, a lei, a regra, a introjeção da moral social.
Mas quando temos aquela perspectiva que inclui
a dimensão da espiritualidade e do conceito da divindade humana, há uma esfera
de moralidade intrínseca no ser, radicada na alma imortal. E é essa que deve
ser acionada, tocada, despertada na educação moral.
Nesse ponto, educar, segundo Sócrates, Rousseau
ou Pestalozzi, não é introjetar uma moral social que entra em conflito com os
impulsos profundos do ser humano, mas sobretudo fazer brotar uma consciência
mais profunda, aquela que deseja algo mais alto e mais sublime, do que o
impulso cego do Id.
Quando se fala então hoje em dia a cada duas
palavras sobre Educação, em imposição de limites, pensa-se a partir dessas
premissas psicanalíticas, que nesse sentido possuem talvez um parentesco com o
imperativo categórico de Kant. O filósofo iluminista considerava que o ser
humano tem um “mal radical”, quer dizer algo de escuro enraizado em sua
natureza. E por isso, a moral deveria se autoimposta como um dever, que ele
chamou de imperativo categórico, causasse bem-estar ou não, ao praticante do
ato moral correto. Essa autoimposição moral, na teoria freudiana, se dá pelo
superego, que também controla e coloca freios à manifestação do ID. Aquele
processo para Kant seria totalmente racional, portanto consciente. Para Freud,
não necessariamente: o ID é totalmente inconsciente; o Superego pode atuar em
parte consciente e em parte inconscientemente. O que importa demonstrar é que
tanto na teoria kantiana, quanto na freudiana, a moral é extrínseca, embora
internalizada para Freud, e embora autolegislada para Kant, e leva o ser a
contradizer seus impulsos, inclusive, contrariando, desviando ou, compensando,
segundo Freud, o princípio básico que nos move, que é o princípio do prazer.
Já numa visão espiritualista, essa contradição
de si é vencida pela real transcendência e pelo encontro de um Ego superior, se
assim podemos nos expressar (não vou aqui invocar a teoria de Jung, com o
Self). E a educação não pode se limitar a dar limites – aliás, deve transcender
esses limites impostos, criadores de conflitos e repressões, para acordar uma
alma com a moralidade intrínseca que possui, como herdeira da divindade.
Outras reflexões – e há muitas – ficarão para
próximos textos.
Comungo com as ideias da professora Dora.
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