Codificador, sim, o mestre o foi de fato, da
doutrina espírita. Kardec o disse: “Em tudo isto não fiz senão recolher e
coordenar metodicamente o ensino dado pelos espíritos; sem levar em conta
opiniões isoladas, adotei as do maior número, afastando todas as ideias
sistemáticas, individuais, excêntricas ou em contradição com os dados positivos
da ciência”.[i] Modesto, vê-se que o grande
didata minimizou sua participação; entretanto, ali, o advérbio revela sua magna
importância pessoal: recolher e coordenar “metodicamente”. Não menos relevante
é o fato de Kardec haver delimitado a matéria-prima do seu trabalho: o ensino
espírita. Ressalte-se ainda sua condição de veterano magnetista, que decerto
lhe garantiu acesso privilegiado ao mais moderno berçário teórico daquilo que
viria a chamar-se spiritism/e.
Kardec não inventou princípios, não criou nada, nem mesmo o vocábulo
espiritismo. Tudo resultou do trabalho de homens e espíritos, quer no eixo
anglo-americano, quer no europeu, quiçá mais além; mas, no nosso caso, em
submissão à especial conjuntura dialógica dessa coleta e coordenação metódica
kardeciana, sem o que houvera spiritism;
porém não doctrine spirite.
Codificação implica codificar, que não é só reunir, compilar; há que se fazê-lo
sistematicamente.[ii] Houve, sim, reunião,
compilação; entretanto por meio de atenta inferência paradigmática de
princípios, cuja fixação se deveu ao método kardeciano antes que ao simples
ensino de homens e espíritos. Nenhuma relevância há no fato de estar ausente
das obras do mestre essa designação, até porque demandaria o juízo do
distanciamento histórico. Chamá-lo codificador só o diminuiria se lhe excluísse
o esforço de coleta e coordenação metódica; no entanto o ato de codificar
implicou méritos e escolhas. A suposta impertinência dessa designação seria,
pois, um caso mais lexicográfico que doutrinário. A reflexão kardeciana é de
fato filosófica. Pertence, pois, ao instituinte, não ao instituído. Fez
diferença e, por isso, Kardec suportou críticas. Espiritismo lato sensu já havia; doutrina espírita,
o espiritismo stricto sensu,
contudo, ainda não existia. Os princípios doutrinários propriamente ditos,
restando de escrutínios metódicos, são obra de Kardec, sim, muito embora já
constassem dos comunicados mediúnicos in
natura, bem como de autores que o antecederam, sobretudo magnetistas.
Assim, o fato de ser “codificador”, ou seja, de trabalhar sobre material
alheio, não implica afastamento das iniciativas pessoais e determinantes de
Kardec em sua produção sistematizada: a codificação kardeciana do espiritismo.
Houaiss registra: “codificar 1
reunir (p. ex.: leis) em um código”; “código
1 conjunto sistematizado de leis ou normas”.[iii] Essa é, precisamente, a vantagem da
codificação kardeciana do espiritismo sobre as demais obras espíritas de todos
os tempos. Pretendeu-se um código a expressar uma universalidade ínsita ao que,
nessa matéria, seriam as leis naturais, quer físicas, quer morais. De tal modo
é crucial essa reflexão identitária que, particularmente, hoje aceito até que se
diga “kardecismo”, porque “espiritismo” é algo de mais vastos empregos,
retroativos até, como em: “O espiritismo entre os druidas”, artigo de 1858, do
próprio mestre na sua Revista. Os druidas leram O Livro dos Espíritos?[iv]
18.2.
Médium.
E médium? Kardec o teria sido? Diz ele que
médiuns inspirados têm mais dificuldade de discernir o que lhes é sugerido
daquilo que lhes é próprio, ao oposto dos médiuns intuitivos, nos quais a
distinção seria mais sensível, donde médiuns inspirados constituírem um tipo de
médiuns intuitivos. Segundo o mestre, sugestionados por nossos anjos guardiães,
espíritos protetores e familiares, todos seríamos, ao abrigo desse
entendimento, médiuns. Nenhum motivo existiria, então, para que Kardec não
fosse médium, inspirado ao menos. E o era, em particular, pelo Espírito da
verdade, seu guia espiritual; um fato, aliás, assumido publicamente, em que
pese àquele pedido de discrição do dia 25/3/1856.[v] No
entanto, reconheceu Kardec ser assistido também por espíritos de um modo mais
geral, ao mesmo tempo em que afirmou não ter nenhuma das qualidades exteriores
da mediunidade efetiva.[vi] Que quis dizer ele
com isso? Que não via, nem ouvia espíritos? Ou que não lhe causavam frêmitos
agindo sobre seu braço para fazê-lo escrever, nem lhe provocavam transes? Ora;
a mediunidade pode ser efetiva, i. e., real, sem ser ostensiva, ou seja,
manifesta à percepção alheia, donde Kardec, pois, só não lhe ter as qualidades
exteriores. Observado em meio a seu trabalho por um espírito que manteve diálogo
com um leitor de sua Revista, o mestre teria sido surpreendido a escrever certa
feita, e estaria rodeado, nessa ocasião, por cerca de vinte desencarnados, que
estariam murmurando acima de sua cabeça. Segundo o informante do além, Kardec
os ouvia tão distintamente que olhava para todos os lados para ver de onde
vinha o ruído, chegando a erguer-se, abrir a janela e checar se não seria, por
acaso, o vento ou a chuva. O mestre afirmaria, depois, que tudo isso era
absolutamente exato. Ficara, porém, esclarecido que só dois ou três desses
cerca de vinte espíritos sopravam mais diretamente ao codificador o que deveria
escrever, e que, por sua vez, julgava serem dele mesmo as ideias. Médium,
portanto, inspirado e, nesse caso, quase audiente,[vii]
o que também se deduz do fato de que a ação espiritual seria tão
constante ao derredor do mestre, sobretudo a do Espírito da verdade, que mesmo
ele não a podia negar.[viii]
Desse modo, não restam dúvidas sobre a
mediunidade de Kardec, ainda que a possuísse sem as qualidades exteriores da
faculdade. Intuição, inspiração, semiaudiência... Pode-se ir além? Ele via os
espíritos, por exemplo? Kardec ensina que quase sempre os médiuns videntes
exerceriam a faculdade em estado sonambúlico, ou dele aproximado; que não raro
ela seria efeito de crise passageira e, nessa medida, apresentaria, portanto, a
qualidade exterior do transe. Segundo o mestre, porém, alguns videntes exercem
a faculdade em estado normal, perfeitamente acordados.[ix]
A priori, não há desse último
tipo de exercício qualquer sinal externo; é efetivo, ou seja, real, mas não
ostensivo, i. e., perceptível. O mais próximo que se poderia chegar da
ostensividade, nesse caso, seria a aferição das visões; p. ex., mediante um
reconhecimento, por terceiros, das características dos falecidos avistados,
mormente se de todo ignoradas do vidente. Por que o ressalto? Explico-me.
Kardec surpreende ao dizer que viu desencarnados atravessando chamas sem que
lhes causasse dor alguma. No original: nous
en avons vu passer à travers les flammes: já os vimos atravessar chamas;
vimo-los passar através das chamas.[x] Para não
conferir a seus textos o excesso de uma conotação impositiva e pessoal demais,
escritores podem tratar a si por ‘nós’ em vez de ‘eu’. É o plural de modéstia.
Quase sempre Kardec se refere a si na 1ª pessoa do plural; raramente na 1ª do
singular. Mesmo que se queira imaginar, aí, a expressão de uma experiência
compartilhada, ainda assim, o próprio Kardec estaria incluído na ação; doutro
modo, escreveria algo como ‘foram vistos’, ou ‘têm sido vistos’ atravessar
chamas, e nunca: ‘nós os vimos’, ‘os temos visto’. Entenda-se: — Eu, Kardec, os
vi; os tenho visto passar pelas chamas.[xi]
O mestre também reporta sua experiência junto a
um bom médium vidente que o acompanhou à ópera. Provável que fosse o sr.
Adrien: “Estivemos juntos nos teatros, bailes, passeios, hospitais, cemitérios
e igrejas; assistimos a enterros, casamentos, batismos e sermões; em toda parte
observamos a natureza dos espíritos que ali vinham reunir-se, estabelecendo
conversação com alguns deles, interrogando-os e aprendendo muitas coisas que
tornaremos proveitosas aos nossos leitores”.[xii] Ali
mesmo, após um baixar da cortina, evocou e conversou com Weber, autor de
Obéron. Este se afastou prometendo insuflar nos cantores mais ímpeto. Dito e
feito. Nesse ínterim, Kardec surpreende ao escrever: Alors on le vit sur la scène, planant au-dessus des acteurs; un effluve
semblait partir de lui et se répandre sur eux; à ce moment, il y eut chez eux
une recrudescence visible d'énergie: Vimo-lo então sobre o palco, pairando
acima dos atores. Um eflúvio parecia derramar dele para os intérpretes,
espalhando-se sobre eles. Nesse momento se verificou entre eles uma visível
recrudescência da energia.[xiii] A forma vit é 3ª p. do sing. do passé simple, il vit: ‘ele viu’.
Kardec, porém, usou o pronome impessoal on,
que equivale ao nosso: ‘a gente’, embora possa indicar também indeterminação do
sujeito: ‘viu-se’; razão pela qual divergem os tradutores entre ‘a gente o
viu’, ‘nós o vimos’, ‘vimo-lo’ e ‘foi visto’. O mesmo se verifica quando
escreve doutra feita: Cela dit, on le
vit aller se placer.[xiv] Desta vez,
Herculano salteia a expressão: ‘dito isso, foi se colocar’. G. Ribeiro acresce
artigo e substantivo inexistentes: “Dizendo isso, o médium o viu ir
colocar-se”. Mas poderia ser: ‘vimo-lo ir colocar-se’, ‘o vimos ir se colocar’.
O mestre, bem como os médiuns que o acompanhavam, teriam compartilhado, pois, a
visão dos espíritos em tempo real? Serviram a Kardec como controle da sua
pessoal dupla vista? Ou Kardec tão só confiou na boa-fé de ambos? Na vidência
isolada de terceiros, nada pode provar que não se trate da imaginação do
sensitivo, mormente se não há confirmação da aparência dos espíritos e suas
ações, como em certos exemplos relacionados pelo mestre mesmo e relativos a
mortos recentes cujos detalhes atinentes a seu aspecto puderam ser subscritos
por amigos e parentes dos falecidos in
loco.[xv]
[i] Revista Espírita. Set/1863: Segunda Carta
ao Padre Marouzeau.
[ii] A.B.L., 2008.
[iii] 1ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[iv] Cf. cap. 24 deste trabalho: Spiritism e
spiritisme.
[v] O Livro dos Médiuns, 182. Revista Espírita,
nov/1861: Discurso aos espíritas bordeleses. Obras Póstumas.
[vi] Revista Espírita. Set/1867. Caráter da
revelação espírita. Nota ao n. 45.
[vii] Revista Espírita. Mai/1859. Cenas da vida
privada espírita, ns. 47 a 53.
[viii] Obras Póstumas. Imitação do evangelho,
Paris, 14 de setembro de 1863.
[ix] O Livro dos Médiuns, 167.
[x] O Livro dos Espíritos, 257 (E. N. Bezerra,
1ª ed. Comemorativa do Sesquicentenário, F.E.B., 2006, p. 202, & J.
Herculano Pires, 54ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 144.)
[xi] Cunha & Cintra. Nova Gramática do
Português Contemporâneo. Cap. 11. 3ª ed., 7ª impressão, Nova Fronteira, 2001,
p. 283.
[xii] O Livro dos Médiuns, 169. Também a
Revista Espírita. Dez/1858.
[xiii] O Livro dos Médiuns, 169. Trad.: J.
Herculano Pires, 18ª ed., L.A.K.E., 1994, p. 176.
[xiv] O Livro dos Médiuns, 170.
[xv] Revista Espírita. Dez/1858. Conversas
familiares de além-túmulo. Uma viúva de Malabar e A bela cordoeira.
Excelente artigo de Sérgio Aleixo. Demonstra grande conhecimento e se coloca apenas como espectador e não como ator. Parabéns ao Canteiro por reproduzir tão excelente texto sobre o Codificador e seu trabalho!
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