quarta-feira, 12 de outubro de 2022

CRIANÇAS, MARIA E O JARGÃO DO AUTOAMOR





Por Dora Incontri 

Hoje é dia das crianças, mas também é dia de Maria, símbolo da maternidade, na sua manifestação negra e brasileira de Nossa Senhora de Aparecida. Crianças precisam de mães Maria e Maria é uma inspiração para mães sensíveis, que tenham vínculo com a tradição cristã.

Mas quero refletir sobre isso, lançando alguma luz sobre uma ideia, o autoamor, que virou uma febre no ramo da autoajuda, seja ela católica, budista, espírita ou laica – pois como a autoajuda vende bem, ela está em toda parte e virou discurso comum da ala da espiritualidade light, que anda sendo semeada em nossos tempos de superficialidade.


Obviamente, uma pessoa saudável, com psiquismo minimamente equilibrado, terá seu autocuidado – o que implica desde cuidados de higiene e alimentação a cuidados psíquicos e financeiros. Ou seja, é necessário, útil, bom que cuidemos de nós mesmos, que tenhamos respeito por nossas necessidades.

Os grandes mestres da espiritualidade (me refiro aos grandes mesmo) sempre pensaram assim e não foram pessoas que maceraram o corpo e usaram de qualquer tipo de autoflagelação, nem física, nem psíquica. Jesus ensinou que é preciso amar ao próximo como a si mesmo. Buda, depois de passar por uma fase de ascetismo exagerado, afirmou que o ideal seria o caminho do meio. Nem ascetismo, nem hedonismo. No Evangelho segundo o Espiritismo, também se condena o autoflagelo e se diz que o ser humano tem que ser do bem, como “homem do mundo”, usufruindo moderadamente dos bens que a civilização oferece.

Nesse sentido, nenhum grande mestre e nenhuma grande tradição espiritual, em sua essência, cai no fanatismo da anulação da pessoa humana, nem no moralismo da repressão de todos os prazeres terrenos. Quem faz isso são os que, em todas as tradições, fazem leituras extremistas e na verdade querem dominar consciências, que devem sempre permanecer autônomas para se autogovernarem, sem necessidade de imposições externas.

Entretanto, também todas as tradições espirituais – inclusive a espírita – enfatizam a abnegação, a doação de si, o desapego aos próprios interesses, aliás o amor ao próximo, como princípio máximo da lei divina.

Em nossa sociedade, porém, ferozmente individualista e narcísica, fortemente hedonista e predominantemente materialista, doar-se, abnegar-se, sacrificar-se por alguém são atitudes menosprezadas, esquecidas e consideradas até de mau gosto. Vivemos cercados de adultos infantilizados, incapazes de assumir responsabilidades com o outro.

Entra o discursinho ralo da autoajuda: o do autoamor, que nunca vejo acompanhado do amor ao próximo, como fazia Jesus. O resumo desse discurso, o subtexto que está por trás dele é:

primeiro tenho que atender aos meus interesses, aos meus desejos, ao meu desenvolvimento pessoal (e entra aí fortemente a busca da prosperidade pessoal) e se sobrar alguma coisinha para o próximo, tudo bem. Ou ainda, eu me amo e o resto que se dane!

Porque o que se vê socialmente é um estímulo a esse tipo de atitude.

Ora, na vida, claro que que temos que atingir um modo de existir independente e autônomo, mas… sempre dependemos uns dos outros e há momentos na existência em que dependemos totalmente dos outros. São os momentos de maior vulnerabilidade por que todos os seres humanos passam: a infância (sobretudo os primeiros anos), a doença, a velhice e a morte.

Quando estamos nessas fases, precisamos de pessoas que nos amem e que nesse momento pensem mais em nós do que nelas. Uma mãe, por exemplo, e de preferência o pai também,  no primeiro ano de vida de um filho, precisa pensar muito mais na criança do que nela própria. Aliás, o nascimento de uma criança, eu digo isso sempre, mexe como egoísmo dos adultos. Somos convocados a sair de nosso umbiguismo, para atender às necessidades do bebê, que requer absolutamente tudo. Precisamos estar numa atitude madura de responsabilidade e não cabe sermos crianças cuidando de outras crianças, como o que acontece muito por aí.

Para driblar esse conflito entre a necessidade dos vulneráveis e dependentes e a necessidade de sobrevivência material ou a tendência ao individualismo que jamais cuida de ninguém, a sociedade oferece o caminho da terceirização: berçários, escolas em período integral, creches, casas de repouso para idosos, babás, cuidadores profissionais etc. Muitas mães e pais gostariam de cuidar mais e estar mais com seus filhos, mas não podem, porque precisam trabalhar. A sociedade não valoriza esse tipo de trabalho de cuidar dos seus e por isso não favorece isso. Muitas mães e pais poderiam cuidar mais e estar mais com os filhos, mas não querem, porque são atraídos para essa vida louca de sucesso profissional e ganhos monetários.

O mesmo se refere aos idosos, aos doentes. Ninguém tem tempo, ninguém tem paciência, ninguém tem vontade de cuidar, de estar junto.

Mas, temos de ter tempo para cuidar de nós. De fazer academia, de viajar, de namorar, de postar no Face que estamos no auge da felicidade, leia-se, prosperidade e fruição dos prazeres da vida.

O discurso do autoamor aí entra como brilhante justificativa e estímulo.

Nunca ouço os arautos desses discursinhos falarem sobre temas como compaixão, dedicação, abnegação, amor devotado…

E assim vamos caminhando para uma sociedade em que adolescentes estão se automutilando, tentando e muitas vezes conseguindo se suicidar; uma sociedade em que velhos morrem sozinhos em apartamentos inóspitos, e cujos corpos só são encontrados meses depois (recentemente houve uma reportagem a respeito na Espanha).

Por isso, quis relacionar o meu texto de hoje, lembrando das crianças, esses seres de ternura, de emoção e de amor, que precisam da nossa presença, de nossos cuidados plenos e lembrando de Maria, mãe de Jesus, cuja imagem representa justamente esse amor de entrega, sem reservas, que não está presente nessa fala rala do autoamor de hoje.

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