A figura histórica que mais me comove, depois
de Jesus, e justo por ser o mais próximo dele, o que melhor manifestou seu amor
é Francesco, Francisco, Francisquinho…
Reler sua história, orar seu Cântico do Sol,
assistir filmes sobre ele (meus proferidos e insuperáveis são Irmão Sol e Irmã
Lua, de Zeffirelli e Francesco, de Liliana Cavani), simplesmente lembrar-me de
sua figura, derrete meu coração…
Não é algo só meu. Ele é o santo mais popular
da Igreja e católicos, protestantes, espíritas e ateus se sentem tocados pelo
Poverello de Assis.
Em seu diário de viagem pela Itália, Fanny
Mendelssohn Hensel, a compositora judia (convertida ao protestantismo),
confessa em sua passagem por Assis, no ano de 1832, que quase virava católica
por causa de Francisquinho.
Mas seria possível explicar essa capacidade
universal e atemporal de arrebatar almas, que tem Francisco?
Não sei se me arrisco a empalidecer os
sentimentos que ele provoca, ao tentar fazer algumas reflexões a respeito.
Estamos em plena Idade Média, mas nesse
momento, está nascendo o capitalismo, na sua forma primeira de mercantilismo. E
Pietro Bernardone é justamente o protocapitalista: fascinado pelo dinheiro, com
empregados tingindo tecidos em condições sub-humanas de trabalho. Louco para
que seu filho, à custa de guerras e ouro, se torne Conde. As Cruzadas andam à
solta – intolerância, mortes em nome de Deus, invasões a terras distantes, a
Inquisição está batendo à porta da história, começa bem no tempo de Francisco.
As mulheres andam cobertas, como andam hoje as muçulmanas e se puderem
participar da vida religiosa, encerram-se em clausuras.
Neste longo período medieval, o povo analfabeto
não conhece diretamente o Evangelho. As missas são em latim, mas há muitos
séculos os povos europeus esqueceram o latim e desenvolverem línguas locais.
Ignoram o que Cristo ensinou.
O povo vive na miséria, os leprosos excluídos
da cidade, sem cuidados, à mercê da caridade de alguns; jamais podem ser
tocados, nunca mais verão suas famílias, morrerão entre a podridão e a fome,
revoltados e sozinhos.
A Igreja se interessa muito mais pelas guerras
“santas”, pelo ouro da nobreza, pelo domínio do mundo do que pelos ensinos do
humilde e suave Nazareno.
A natureza jazia à distância da poesia e da
literatura – tudo era voltado apenas para a submissão e a glória de Deus.
Apenas canções cavalheirescas dos menestréis davam um tom mais romântico à
beira dos castelos, onde as damas eram também enclausuradas.
Profundos fossos sociais, enormes injustiças,
por toda parte sofrimento desamparado: nem escolas, nem hospitais, numa Europa
que se dizia cristã.
E nasce um menino em Assis, que iria se
insubordinar contra tudo isso com graça, leveza, amor e poesia.
Primeiro, Francesco experimenta os prazeres
mundanos, com a riqueza do pai; depois vai em busca da glória guerreira.
Mas dois eventos o despertam e o relembram a
que viera: a sua prisão em Perugia e a voz explícita de Jesus, que o chama a reconstruir
sua Igreja.
Ele tem contato com um texto do Evangelho em
língua vulgar – coisa considerada alta subversão na época (uma forma do povo
não conhecer que a sociedade estava estruturada em total oposição aos
princípios igualitários e fraternos do Mestre). E será ele a escrever a
primeira obra literária do que viria depois a ser a língua italiana: o Cântico do Sol é em vulgar. Antes de Dante,
Francesco inaugura o italiano.
Sua primeira regra – que não será aceita pelos
próprios franciscanos e pela Igreja – é em língua vulgar e, em sua maior parte,
uma repetição pura e simples de mandamentos de Jesus.
Era como uma revivescência refrescante e
confortadora das palavras do Mestre – um apelo direto ao coração cansado do
povo e um ideal de vida pura para a juventude enojada do sangue das guerras.
Francesco provoca uma revolução. Arrasta a
juventude de Assis e inclui as mulheres, com Chiara e suas amigas – que a
princípio começam a viver junto dos primeiros amigos de Francisco. Inédito na
Idade Média: mulheres misturadas com homens, cuidando de leprosos, andando
pelas ruas, sem a tutela de maridos e pais. Um escândalo. A história oficial da
Igreja trata de abafar esse episódio e diz que Chiara foi desde o início uma
enclausurada. Mas Jacques Le Goff e Inácio Larrañaga refutam essa versão
arrumadinha e comportada, dentro dos padrões impostos pela Igreja.
Francesco e seus companheiros e companheiras
invertem a ordem das coisas: fazem da Igreja de Porciuncula um abrigo para os
pobres, cuidam dos leprosos, tocando-os, abraçando-os, sobretudo
devolvendo-lhes a fé e a dignidade.
A comunidade primeira dos franciscanos é
alegre, é jovem, é livre, é pura…
Um libelo contra a sociedade hierarquizada,
pesada, sangrenta de então. Mas um libelo amoroso, que não condena.
Aliás, esse é o encanto de Francesco. Ele
exemplifica, sem arrogância. Ele mostra de forma concreta (através de atos
dramáticos e simbólicos, como o despir-se publicamente ou a criação do
presépio) um amor infinito por todos. Socorre os pobres, tocando os ricos. Se
faz um frade despojado, falando sem rancor com papas e cardeais. Conversa com
os pássaros, mas também amansa os lobos. Deixa marcas profundas em todos, por
sua poética simplicidade, ardente sinceridade e amor sem condições.
Le Goff mostra em sua biografia magistral o
quanto a Igreja se empenhou em arrumar a história de Francisco dentro dos seus
cânones, chegando a destruir narrativas originais. Fizeram dele um santinho
melado, bem obediente às ordens papais.
Mas não foi assim. Francisco fez uma revolução
pacífica, amorosa, apenas para dizer e mostrar uma coisa: é possível viver o
Evangelho em sua radicalidade, de fraternidade, de desapego, de amor – o que
contrastava e contrasta até hoje com as sociedades que se dizem organizadas,
dentro da herança ocidental cristã.
Nascia um mundo, em que o principal deus seria
o dinheiro. Francesco renuncia a tudo e proclama: a pobreza é a liberdade.
Homens e mulheres de sua época responderam ao seu chamado. E até hoje, sua
mensagem atual, tocante, transformadora!
Salve, Francisquinho!
fonte: https://doraincontri.com/
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