Entre
a pureza da ortodoxia e a salada mística: o que estamos fazendo com o
Espiritismo?
Vários articulistas já manifestaram aqui suas
posições a respeito desse polêmico assunto: pureza doutrinária. Chegou a minha
vez de dizer algo a respeito.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer (ou
resgatar) alguns conceitos básicos do Espiritismo: Não se trata de uma
revelação sagrada, por isso considero muito problemática a denominação das
obras de Kardec de o “pentateuco espírita”! Os livros de Kardec não são como a
Bíblia é para os fundamentalistas cristãos – palavra de Deus, revelada, que
pode ser citada como fonte de autoridade absoluta. A obra de Kardec é de
pesquisa, em que encarnados e desencarnados participaram da construção.
Justamente uma das grandes contribuições de Kardec foi dessacralizar a
revelação. E ele fez isso estabelecendo um método de pesquisa dos fenômenos
espíritas, uma abordagem nova da vida espiritual, com racionalidade crítica e
observação empírica. Então, conservar-se fiel à obra de Kardec é muito mais
conhecer, entender, aprofundar e mesmo desdobrar com os recursos atuais, o método
criado por ele (e foi criado por ele e não pelos Espíritos! Esses são na
verdade ao mesmo tempo o objeto de estudo e os cooperadores de Kardec). O
conteúdo do Espiritismo está sujeito à revisão, reelaboração e leituras
históricas (compreendendo que algumas coisas que estão nas obras de Kardec são
próprias do século XIX, têm uma influência da cultura europeia da época). O
próprio fundador do Espiritismo não o queria fechado, num corpo de dogmas, a
que leitores futuros teriam que se submeter cegamente.
O tempo inteiro, Kardec alerta para o aspecto
científico de sua proposta, cujas hipóteses poderiam ser revistas.
Mas é claro que encarar o Espiritismo como um
pensamento aberto, em constante construção, porque se trata de um pensamento
racional, científico, sempre pronto ao diálogo com as descobertas da ciência e
com os avanços culturais, não significa fazer dele uma colcha de retalhos, uma
salada mística, incorporando modismos, novidades sem fundamento, práticas
bizarras e ideias irracionais…
Então, podemos dizer a grosso modo que temos
duas tendências predominantes no movimento espírita brasileiro atual:
Dos ortodoxos – vamos chamá-los assim – que não
compreenderam o caráter dinâmico e aberto do Espiritismo (e muitos não
compreenderam também o caráter fraterno da doutrina) e usam os textos de Kardec
como argumento de autoridade, consideram suas obras como uma Bíblia. Esses
ortodoxos, que estão dentro das instituições estabelecidas “como movimento
oficial” são em geral pessoas avessas ao diálogo, praticam a censura, a
exclusão, não aceitam nenhum tipo de pensamento crítico e fazem uma reprodução
pobre, descontextualizada, reacionária do texto de Kardec – que se torna um
texto apostilado, interpretado apenas por um viés religioso, com muito pouca
articulação racional e nenhum enraizamento científico.
Devo dizer que nós, da Associação Brasileira de
Pedagogia Espírita, apesar de mantermos um forte apelo à volta a Kardec, na
linha de Herculano Pires, que temos um compromisso com pesquisa, filosofia e
uma ética espírita, somos muitas vezes hostilizados ou silenciosamente
excluídos por essa facção oficial, que se pretende ortodoxa. Meus livros são
censurados em muitos centros espíritas, a ABPE não é chamada a participar de
grandes eventos federativos para falarmos sobre Educação, quando nós somos a
entidade especializada no assunto, com uma produção reconhecida, inclusive
academicamente. Mas somos críticos. E para esse lado do movimento, quem critica
é polêmico, persona non grata. E assim, o Espiritismo vai se tornando nas mãos
no movimento institucional, mais uma religião fechada, sem nenhum avanço.
Do outro lado, estão os adeptos do vale-tudo.
New Age, autoajuda, cristais, livros mediúnicos com revelações estapafúrdias
etc. É a salada mística. Para esses, atualizar Kardec é simplesmente
esquecê-lo, ignorando seus critérios de racionalidade, coerência e busca
metódica da verdade. Mas é claro que esses criticam os ortodoxos e os ortodoxos
os excluem sem pena.
E quais as motivações emocionais, inconscientes
(ou conscientes) que estão por trás dos dois grupos?
No primeiro, a motivação é o poder – querem um
movimento hierarquizado, que não debate, que não dá espaço para contestação
(por mais qualificada que seja a pessoa que conteste), que se mantém sempre
acrítico – e devo dizer, que embora esses se digam os reais seguidores de
Kardec, não o compreenderam nem pela rama, pois falta de diálogo é falta de
humildade, falta de criticidade é dogmatismo, exclusão é falta de fraternidade.
Portanto, nada disso é espírita.
No segundo grupo, a motivação é o comércio:
médiuns que viram terapeutas holísticos, médiuns que se pretendem gurus em
todos os assuntos, livros que vendem às pencas nas grandes redes de livrarias e
que mais parecem ficção científica de mau gosto do que obras mediúnicas sérias,
comprometidas com o esclarecimento e a edificação dos leitores.
Então, logo se vê que, como dizia Kardec:
contra interesses, não há fatos que convençam. Quando a motivação é o poder, a
vaidade, a projeção pessoal ou o lucro financeiro, pura e simplesmente, não há
verdadeiro amor ao Espiritismo, sincera busca da verdade, esforço sacrificial
pela ideia, trabalho sério e profundo – mas de ambos os lados reina a
mediocridade.
É claro que tudo isso faz parte do contexto em
que vivemos no momento. Todos os movimentos religiosos e espiritualistas têm
alas fundamentalistas e alas de autoajuda light. Tem aqueles que desejam reter
o movimento numa redoma de ideias fechadas e os que querem abrir, sem nenhum
critério, a não ser o critério comercial.
Isso tudo em relação às posições existentes no
momento espírita atual. Há muitos desgarrados, insatisfeitos, críticos em
relação a ambos os lados e são para essas pessoas que nós, da ABPE, temos
oferecido uma alternativa que não se pretende nem dogmática, nem superficial e
descomprometida com a verdade (ou a sua busca, pois estamos ainda muito aquém
de verdades definitivas).
Há duas coisas que deveriam unir todos os
espíritas: o elo de fraternidade e o compromisso com a busca isenta e
desinteressada da verdade – podemos nos enganar, e as verdades por enquanto são
relativas, mas por isso mesmo, temos que aprender a dialogar com o outro e
temos que fazer um processo de autoconhecimento (aconselho inclusive com
terapia) para observarmos em nós as paixões, as inclinações, as motivações
obscuras que possam estar nos guiando em nossas atitudes em relação a essa
ideia tão bela e fecunda, tão libertária e progressista, que se chama
Espiritismo.
Portanto, nem pureza ortodoxa, nem salada
mística, mas estudo sério, aprofundado das obras de Kardec, diálogo aberto,
civilizado, amistoso, desinteresse real, fraternidade – eis o que proponho
aqui, para encerrar por enquanto, esse debate em nosso blog.
fonte: https://www.pedagogiaespirita.org.br
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