O termo kardecismo não consta no vocabulário
espírita. Na realidade, o termo surge de um recorte de estudos socioantropológicos
que paulatinamente vulgarizou-se no Brasil para definir os seguidores da doutrina
codificada por Allan Kardec. O kardecismo é um constructo do Espiritismo no
Brasil.
No
entanto, na Revista Espírita, outubro de 1865, há uma comunicação que Kardec
intitula “Partida de um adversário do
Espiritismo para o Mundo dos Espíritos”, onde o Espírito adverte:
“Já se operam divisões entre vós.
Existem duas grandes seitas entre os espíritas: os espiritualistas da escola
americana e os espíritas da escola francesa. Mas consideremos apenas esta
última. É una? Não. Eis, de um lado, os puristas
ou kardecistas, (...)”
,
O
professor Rivail se utilizou de pseudônimo – Allan Kardec – de uma das suas
encarnações, na Gália antiga, como sacerdote druida, que lhe foi informado por
um Espírito familiar de nome Zéfiro, para validar as obras da codificação
espírita. Sempre afirmando que o Espiritismo não era obra dele, mas dos
Espíritos, Rivail se fez anônimo para que a obra se tornasse grande.
Kardec usou de todo o seu desvelo, como
ele mesmo afirma em Obras Póstumas –
Projeto 1868, ao destacar que o maior obstáculo capaz de retardar a propagação
da Doutrina seria a falta de unidade. Ele afirma:
“O único meio de evitá-la, senão
quanto ao presente, pelo menos quanto ao futuro, é formulá-la em todas as suas
partes e até nos mais mínimos detalhes, com tanta precisão e clareza, que
impossível se torne qualquer interpretação divergente.”
Na continuação ele desenvolve
considerações acerca do desvirtuamento dos ensinamentos de Jesus.
Na
verdade, as ideias de Kardec sobre a dinâmica da difusão do Espiritismo nunca
estiveram como prioridade na agenda das lideranças espíritas brasileiras.
Por
volta do ano de 1860, a bagagem dos viajantes e imigrantes que vinham da França
para o Brasil passa a ter um item necessário em suas bagagens: O Livro dos Espíritos. Casimir Lietaud
foi um personagem determinante para a disseminação das ideias espíritas no Rio
de Janeiro e também foi o autor da primeira obra espírita editada no Brasil - Os tempos são chegados -, na língua
francesa.
A partir daí, o
Espiritismo irá enfrentar no Brasil as principais correntes de ideias aqui
dominantes e também da Europa: a) uma “cientificista”, fascinada com a
leitura de manuais de positivismo, evolucionismo e darwinismo social; b) outra “liberal”,
associada à afirmação do princípio de liberdade humana e das bandeiras
políticas do republicanismo e do abolicionismo; c) e outra “conservadora”, dominada
fundamentalmente pelo pensamento católico. Não se pode esquecer também a
influência indígena e africana.
Por
força dessas correntes, os prosélitos espíritas vão compondo relações de acordo
com suas tendências ideológica. Os maçons espíritas vão se agregar com as
causas abolicionistas e republicanas (Fourierismo); dialogam com a “ciência”
dos modernos esculápios (Mesmerismo e Homeopatia); e os que se contrapunham às
doutrinas e instituições católicas.
Vê-se,
pois, que o ideal espírita vai absorvendo pensares diversos e fragmentando-se
dentro desse caldo de cultura, configurando-se através de um “diálogo sincrético.”
A esse respeito Marshal Sallins, em sua obra Ilhas de História, assegura:
“(...) Agindo a partir de
perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de
suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades
elaboram os consensos, cada qual a sua maneira. A comunicação social é um risco
(...). E os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais. (...).”
Emerson
Giumbelili, em sua prestigiadíssima obra O
Cuidado dos Mortos, 2º lugar no Prêmio Arquivo Nacional de 1995, meticuloso
trabalho da “História da Condenação e Legitimação do Espiritismo” no Brasil,
assim sentencia:
“Não parto, assim, das obras de
Kardec e sim da leitura que delas fazem seus discípulos no Brasil (...). Não se
trata, portanto, de usar Kardec contra seus discípulos (ou vice-versa), mas de
percebê-lo em sua imanência a um discurso que se conforma segundo uma série de
outras determinações. Nem se trata, por outro lado, de afirmar a existência de
uma homogeneidade doutrinária e ritual entre os vários grupos existentes nesse
período. A diversidade de práticas e de interpretações filiadas ao Espiritismo
era apontada pelos próprios adeptos.”
A
priori, se observa que muitos estudiosos, não espíritas, acerca do Espiritismo
no Brasil comungam com a mesma constatação de Giumbelli.
Com
essa fragmentação o Espiritismo vai construindo a sua própria identidade no
Brasil, distanciando-se dos anseios de Allan Kardec.
Constata-se
nesses estudos que alguns espíritas defendiam o estudo apenas de O Livro dos Espíritos, encarando-o
apenas como ciência. Os estudiosos das demais obras de Kardec eram reconhecidos
como kardecistas.
Os espíritas científicos privilegiavam a parte experimental – a dos
fenômenos físicos. Os espíritas puros, só aceitavam a ciência e a
doutrina filosófica, recusando o seu aspecto religioso. E a corrente chamada mística, embora
reconhecesse toda a obra de Kardec, considerava fundamental a leitura atenta de
O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Surgem também os roustainguistas, que priorizavam a obra Os Quatro Evangelhos, de J. B. Roustaing, e que futuramente vão
figurar como estudo obrigatório pela Federação Espírita Brasileira.
Um
cisma se estabeleceu: os espíritas científicos versus os espíritas místicos ou religiosos, com o objetivo, e não poderia de ser
diferente, de assegurarem a primazia do discurso no seio do movimento espírita
crescente.
O
que se vê a partir daí foram as sucessivas dissidências internas e a formação
de novos grupos – o que se perpetua até hoje -, na maioria das vezes com pouco
e nenhum conhecimento da doutrina e do pensamento de Allan Kardec,
possibilitando um movimento espírita difuso e vulnerável a práticas
principalmente dos neófitos que migram de outras correntes religiosas.
Em 1949 a Federação Espírita
Brasileira lança o Pacto Áureo, com o
propósito de estimular a unificação da família espírita. Dos seus
desdobramentos surge, em 1950, a Caravana da Fraternidade, liderada por
Leopoldo Machado, que empreende viagem aos estados do Norte e Nordeste, com o
propósito de se obter apoio para o sucesso do referido pacto.
Em um olhar sobre o movimento
espírita brasileiro a partir do cisma mencionado prevaleceu o fundamento
religioso, nascendo deste a organização de centros espíritas em forma de
igrejas. Resultado: institucionalismo, profissionalismo religioso,
missionarismo, partidarismo, personalismo.
Indiscutivelmente é o que se
conclui, quando se fundamenta qualquer tipo de conhecimento dificilmente o
autor terá controle de como os seus seguidores irão tratá-los. Vê-se, no
entanto, que Kardec preveniu os adeptos do Espiritismo desse risco.
Assim:
Cristo não é cristão.
Marx não é marxista.
Kardec não é kardecista.
E o périplo continua!
Referências
ARRIBAS, Célia da G. Afinal, espiritismo é religião?. São Paulo: Alameda, 2010.
DAMÁZIO, Sylvia F. Da Elite ao Povo – advento e expansão do Espiritismo no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1994.
GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos – uma história da condenação e legitimação do
espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
KARDEC, Allan. Revista espírita 1865. Brasília. FEB. 2004;
MARSHAL, Salim. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
Nenhum comentário:
Postar um comentário