Todas as vezes que me sento diante do
computador para escrever algum artigo, penso seriamente naquilo que seria
possível para mim, mas que, antes de tudo, poderia despertar algum sentido mais
profundo para os que me leem.
Naturalmente, a minha pretensão é grande, pois
reconheço a minha pequenez para tal, no entanto, parto do princípio de que, se
possível, eu possa escrever sobre um assunto que não seja corriqueiro.
Entretanto, como psiquiatra, não consigo fugir
muito aos assuntos ligados ao dia-a-dia da minha experiência profissional.
Portanto, escolhi mais uma vez abordar um tema voltado à questão patológica: a
alucinação. Contudo, desta vez, mais do que nunca, o meu referencial é Kardec.
Tenho buscado, ultimamente, estudar mais sobre
o trabalho do Codificador do Espiritismo; porque, certamente, ele deve ser o
nosso farol para as lides dentro do movimento espírita. Como a grande maioria
dos espíritas, passei muitos anos preso ao Pentateuco kardequiano, acreditando
que nas obras básicas teria todo o arsenal de conhecimentos necessários. Já há
algum tempo, (mas acentuou-se neste ano, em que se comemora os 150 anos da
Revista Espírita) venho lendo e estudando este conjunto basilar e tenho
aprendido que é nele que vamos encontrar o pensamento de Allan Kardec, como
pesquisador, de forma mais exemplar.
Na edição de julho de 1861, Kardec ocupa-se em
fazer um estudo minucioso, dentro das possibilidades daquela época, mostrando o
ponto de vista da doutrina sobre a alucinação e, diferentemente de muitos
espíritas, ele não se detém apenas na explicação espiritual para o fenômeno,
reconhecendo também a patologia, a qual precisa ser tratada. É justamente sobre
este texto que gostaria de comentar, permitindo-me citar literalmente alguns trechos
para o meu intento. O seu título é: “Ensaio Sobre a Teoria da Alucinação”.
Allan Kardec inicia assim:
Os que não admitem o mundo incorpóreo e
invisível julgam tudo explicar pela palavra alucinação.
Infelizmente, para muitos continua sendo uma
verdade. No entanto, a própria Organização Mundial de Saúde orienta que os
fenômenos ditos espirituais não podem ser catalogados como patológicos, quando
aceitos pela cultura daquele povo e não provocam alterações importantes no
comportamento da criatura na sua vida diária, deteriorando o seu psiquismo.
Temos, hoje, no Código Internacional de Doenças, um item denominado
“Transtornos de Transe e Possessão” que, embora seja catalogado como um
transtorno dissociativo, é visto e tratado já de forma diferenciada. Existem,
hoje, vários estudos publicados em instituições de renome mundial, onde
profissionais da psiquiatria buscam diferenciar as experiências espirituais dos
fenômenos psicopatológicos. A tese de doutorado do Dr. Alexander Moreira de
Almeida em psiquiatria, pela Universidade de São Paulo (USP – 2005) –
disponível no site da universidade – demonstrou, inclusive, que muitos médiuns
e espíritas têm os padrões de saúde mental superior ao da população geral. Por
outro lado, é triste ter que constatar que muitos espíritas teimam em afirmar,
como os fanáticos materialistas, que tudo é mediunidade e obsessão espiritual,
negando a visão integral do ser.
Continua o mestre lionês:
Como é que ainda não explicaram a fonte das
imagens que se oferecem ao espírito em certas circunstâncias? Real ou não, o
alucinado vê alguma coisa; dir-se-ia que ele crê estar vendo, mas que nada vê?
Naquele momento, a ciência não tinha recursos
para responder a Kardec, no entanto, ele, em sua capacidade especial de
perquirir, estava correto: alguma coisa deveria acontecer e explicar a fala dos
que relatam tais visões. A Neurociência apresentou, nos últimos anos, relatos
de experiências sensoriais geradas de forma automática e intensa, oriunda de um
mecanismo disfuncional do indivíduo, existindo uma série de situações
relacionadas com alterações em regiões específicas do cérebro, como estimulação
do lobo temporal, que pode provocar intensos flashbacks, sensações de
“presenças” de seres ou pessoas e alteração na percepção da forma dos objetos e
a estimulação do sistema temporal/límbico. Este, por sua vez, pode levar as
sensações intensas de alegria, de estar na presença de Deus, e precipitar
visões religiosas. Na verdade, os trabalhos neste campo têm demonstrado que
alucinações, imaginação ou realmente perceber e identificar os objetos, no
campo visual, possuem as mesmas bases anatômicas e neuroquímicas. Complementam,
dizendo que, numa varredura cerebral, a atividade fisiológica e as áreas
cerebrais utilizadas, tanto no caso da percepção de um objeto externo, ou no
simples fato de imagina-lo, são as mesmas. Segundo estes estudiosos, que
permanecem numa abordagem reducionista materialista, o que no caso do relato de
visões de “assombrações” faz a diferença é o fato da inconsciência do
observador ter gerado tais percepções.
Preocupado em distinguir as verdadeiras
aparições, fossem elas materializações ou vidências, das ilusões e alucinações,
Kardec apresentou a seguinte pergunta aos espíritos:
– Podem ser consideradas como aparições as
figuras e outras imagens que muitas vezes se apresentam no primeiro sono ou
simplesmente quando se fecham os olhos?
Como resposta, ouviu:
Tão logo os sentidos se entorpecem, o Espírito
se desprende e pode ver, longe ou perto, o que não poderia ver com os olhos.
Por vezes essas imagens são visões, mas também podem ser um efeito das
impressões deixadas pela vista de certos objetos no cérebro, que lhes conserva
traços, como conserva sons. Então, desprendido, o Espírito vê no próprio
cérebro essas impressões, que se lhe fixaram como se o fizessem sobre uma chapa
de daguerreótipo1.
Vê-se, claramente, que os espíritos diferenciam
as chamadas ilusões, que podem acontecer em qualquer estado de entorpecimento,
das visões espirituais propriamente ditas, exigindo maior cuidado do estudioso,
quando questionado sobre o assunto.
Prossegue o Codificador:
No estado normal, estas imagens são fugidias e
efêmeras, porque todas as partes cerebrais funcionam livremente; mas no estado
de doença, o cérebro está sempre mais ou menos debilitado; não existe mais
equilíbrio entre todos os órgãos; somente alguns conservam sua atividade,
enquanto outros estão de certo modo paralisados. Daí a permanência de certas
imagens, que se não mais apagam, como no estado normal, pelas preocupações da
vida exterior; eis a verdadeira alucinação, a fonte primeira das ideias fixas.
Brilhantemente, Allan Kardec separa os quadros
que encontram sua problemática no comprometimento orgânico cerebral, das
situações ilusórias, que desaparecem com o fixar do estado de consciência da
criatura. Certamente, encontramos vários processos oriundos das alterações
cerebrais que, por sua vez, são frutos de lesões morais e energéticas na
estrutura espiritual, por ações infelizes e criminosas do passado, nas fieiras
das reencarnações. Assim, o cérebro pode fazer uma leitura errônea do estímulo
captado ou gerar estímulos próprios interpretados como exteriores. Estas
situações gerariam no primeiro caso as ilusões e no segundo, as alucinações.
Tenho para mim a certeza de que o conteúdo das
alucinações e dos delírios está relacionado diretamente com as vivências
transatas da alma, em suas diversas peregrinações pela carne.
No desenvolvimento de suas ideias, Kardec
prossegue falando agora das aparições, ou fenômenos espíritas, diferenciando-as
de forma primorosa:
As verdadeiras aparições têm um caráter que, para
o observador experimentado, não permite confundi-las com os efeitos que
acabamos de citar. (…) Aliás, nas aparições, como em todos os outros fenômenos
espíritas, há o caráter inteligente, que é a melhor prova de sua realidade.
Toda aparição que não dá qualquer sinal inteligente pode, com toda a certeza,
ser posta na categoria das ilusões.
Quando o Codificador fala de caráter
inteligente, ele mesmo mostra, posteriormente, com um exemplo claro. Como
explicar a aparição de uma pessoa que o sensitivo acreditava vivo, na qual
ocorre o relato com objetividade do processo de desencarnação, que ocorreu
minutos atrás, em um local também desconhecido do médium, senão pela teoria
espírita, que nos afirma a imortalidade da alma e a sua comunicabilidade após a
morte?
É preciso que a ciência aceite o elemento
espiritual, para poder entender e explicar vários fenômenos que, como a
vidência e materialização, encontram sua origem na ação do espírito. Quanto aos
casos que envolvem ilusão, alucinação e vidência, fechamos as observações do
tema com uma fala de Kardec, ainda, neste artigo:
É principalmente em Medicina que o elemento
espiritual desempenha um papel importante; quando os médicos o levarem em
consideração, enganar-se-ão com menos frequência do que agora. Aí extrairão uma
luz que os guiará mais seguramente no diagnóstico e no tratamento das doenças.
Excelente reflexão. O Codificador não pára de me emocionar com a sua capacidade de vislumbre além de sua época. Roberto Caldas
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