Viralizou nas redes sociais um trecho editado
de um evento de 2015, o 4º Congresso Espírita do Conselho Espírita do Estado do
Rio de Janeiro. No trecho (vídeo abaixo) que tem sido insistentemente
compartilhado pelos espíritas, o jornalista André Trigueiro propõe uma reflexão
interessante. Diante de estatísticas que mostravam um número muito pequeno de
brasileiros dedicados ao voluntariado, números altíssimos de homicídio, de
aborto e roubo de carros, sem contar a Lava Jato que naquele ano já tinha o
título de maior escândalo de corrupção da história, poderíamos afirmar que o
Brasil é o coração do mundo e a pátria do evangelho?
Na roda de palestrantes que foram instigados
pela provocação de Trigueiro estavam César Braga Said, Divaldo Franco, Haroldo
Dutra, Alberto Almeida e Sandra Della Pola. No trecho divulgado, o vídeo foi
editado e só a fala de Haroldo Dutra aparece.
O livro que afirma que o Brasil seria essa
pátria do evangelho além do coração do mundo, foi escrito em 1938 pelo médium
Chico Xavier, psicografando o texto do espírito Humberto de Campos (Irmão X).
Em suas páginas, o autor nos mostra os bastidores dos processos decisórios dos
administradores do planeta para fazerem da terra que viria a ser o Brasil, a
sede do evangelho de Jesus no mundo, e que no futuro irradiaria luz, paz e
fraternidade para os demais povos.
Nesses 80 anos que nos separam da publicação do
livro, muitas críticas foram feitas ao seu conteúdo. As incongruências
históricas como por exemplo considerar o povo português como o mais pobre e o
mais trabalhador da Europa, e as incongruências narrativas como a surpresa e o
choro dos anjos ao saberem de atrocidades cometidas pelos espíritos encarnados,
num texto carregado de jargão católico, desafiam a razão.
Afirmações categóricas sobre o alto nível
evolutivo de personagens da história brasileira como Tiradentes e Dom Pedro II
sem um exame mais profundo de suas
vidas, revelando uma idealização ufanista; conceitos sem nenhuma evidência
sobre o magnetismo especial da posição geográfica do Brasil, entre outras
passagens, ditados por um único espírito, sem nenhum tipo de confirmação por
outros médiuns e outras psicografias, sem nenhum apoio da história e da
ciência, não teriam passado pelo crivo de Kardec.
Mais do que isso, em 1949, a Federação Espírita
Brasileira (FEB) definiu que caberia aos espíritas do Brasil colocarem em
prática a exposição contida no livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do
Evangelho, de maneira a acelerar a marcha evolutiva do Espiritismo. Essa
determinação que passou a fazer parte do estatuto da instituição na ocasião do
Pacto Áureo (união das instituições espíritas em torno da FEB), amarrava mais
ainda ideias roustanguistas à doutrina espírita. Não por acaso no capítulo 22
do livro, Jean-Baptiste Roustaing é apresentado como um dos cooperadores de
Kardec. A recente polêmica sobre a adulteração do livro A Gênese mostra que o
roustanguismo se infiltrou no espiritismo assim que Kardec morreu, e veio da
França para o Brasil, fincando raízes profundas, místicas e catolicizantes, que
só agora começam a ser arrancadas.
No vídeo, Haroldo Dutra dramatiza as interações
entre os personagens do livro. Jesus, Ismael e os anjos se envergonham, choram,
se desesperam, até que o “governador da Terra” pede pra Ismael levar uma “turba
de espíritos infelizes” para povoar o Brasil. Na leitura de Haroldo o Brasil é
um “hospital” e não uma “galeria de arte”, não foi feito para “exibir santos”,
mas sim para “regenerar seres”, já que “o que há de pior” está aqui. Esse
constante reforço da ideia de oposição entre espíritos evoluídos e espíritos
“caídos” é a base da influência do roustanguismo na doutrina espírita. O que no
espiritismo de Kardec é aprendizado natural, evolução contínua, livre e
responsável se torna tragédia, queda, punição nas doutrinas de Roustaing.
A tese central de Roustanig sobre a natureza
especial do corpo de Jesus parece pontual e sem importância, mas tem
consequências profundas. Se Jesus não reencarnou nas mesmas condições que todos
os homens, não sofreu as dores e as delícias de uma vida física, sua forma de
viver a vida, e portanto seu exemplo, perde força. Além disso, essa ideia
estabelece um abismo entre os espíritos ditos evoluídos e a maioria dos
espíritos encarnados que seriam atrasados evolutivamente. Esses conceitos
alimentam ideias que rotulam espíritos como “trevosos”, derivando cenários de
batalhas épicas entre legiões das trevas e espíritos de luz. O recorrente medo
dos “espíritos obsessores”, a separação entre espiritismo e umbanda (que é
considerada inferior), o tabu da mediunidade nos centros espíritas e por fim o
misticismo e a falta de critério racional que dominam o mercado editorial, são
consequências diretas disso.
A defesa que Haroldo faz do livro é uma defesa
do posicionamento da FEB, do Pacto Áureo, do roustainguismo, ainda que ele faça
isso com um verniz de humildade (ele diz que ele mesmo “é um deles”, se
referindo aos “piores” espíritos que foram “trazidos” para o Brasil, arrancando
aplausos de uma plateia que o idealiza e venera). O ufanismo do livro de
Humberto de Campos, em consonância com o contexto histórico em que foi escrito
(o nacionalismo do Estado Novo), ainda hoje desperta sentimentos de que
seríamos um “povo escolhido”, e a plateia, os espíritas (que se veem como os
“verdadeiros” cristãos”), se identificam fortemente com isso e por trás do
discurso cheio de suposta humildade, há uma grande pretensão.
Voltando à provocação de André Trigueiro que
nos pergunta a todos se, considerando o cenário atual em que “a fome devora
nossos irmãos agonizando entre riquezas e os abutres dividem o tempo em guerra
e paz para banquetear os lucros” (para citar o Canto da Libertação de Herculano
Pires), o Brasil seria então o coração do mundo e a pátria do evangelho?
Acho que a pergunta não faz sentido. Não podemos
ser aquilo que não construímos. Se quisermos ser qualquer coisa que seja,
precisamos “nos atirar, certos, serenos, firmes, seguros e confiantes, na
construção desse futuro” – lembrando de novo Herculano – conscientes de que
somos todos iguais. Qualquer discurso de pretensa superioridade espiritual de
um povo, de um grupo, de uma corrente espiritual revela na verdade uma boa dose
de vaidade, ufanismo e mistificação.
Já se perguntou o porquê de Ser o Haroldo a responder esse tema à frente dos outros srta Dora Incontri?
ResponderExcluirSerá que Doutrina Espirita também não está a condenar a eternidade o erro de Roustaing? Ou a providência permite que os erros sejam consertado
por quem os comete? A Doutrina que professo a Divindade Maior me sinaliza que cada um é responsável por seus erros, que não é cristalizando os erros infelizes de Confrades de caminhada Evolutiva que irá me fazer progredir e fazer a parte que me cabe. Eu não gosto de afirmar nada, mas gosto de me questionar sobre o que intimamente me incomoda. É assim que vou seguindo a vida passo à passo. Como diz meu amigo Jorge Luis. Graças a Deus aprendi que as respostas vêem quando enfreto frente à frente ao Espírito imperfeito que sou.
Sheila, a participação do Haroldo foi reproduzida, muito embora os demais também tenham respondido à questão. Não se está condenando nada, mas apenas fazer refletir a verdade. Não se corrigem erros sem não os debatê-los, discuti-los, sempre mantendo os princípios da fraternidade. Leia a frase de Kardec que ilustra este espaço: Existe polêmica e polêmica. "Existe aquela ante a qual jamais recuaremos: é a discussão séria dos princípios que professamos."
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