Kardec desenvolveu a primeira parte de O Livro dos Espíritos em sua última
obra, A Gênese, os Milagres e as
Predições segundo o Espiritismo, onde lecionou que não é possível
perscrutarmos a natureza íntima de Deus, porque nos falta o sentido que só uma
completa depuração do nosso espírito pode fornecer-nos; desse modo, só o
perceberemos em todo o seu esplendor quando formos espíritos puros, isto é, no
mais alto grau de desmaterialização.[i] Assim,
Deus não nos seria incognoscível para sempre. Isso deveria ser suficiente para
afastar as pretensões de empréstimo ao espiritismo daquele sabor agnóstico do
deísmo independente. Os adeptos dessa ideia mereceram oposição de Kardec, o
qual não cria que, uma vez estabelecidas as leis gerais que regem o Universo,
daí por diante, aquele que as promulgou de mais nada se ocupe. Para o mestre,
ao fazê-lo demasiado grande para se abaixar até suas criaturas, findam por
torná-lo grande egoísta e o rebaixam até o nível dos animais que abandonam suas
crias à natureza. Esses deístas independentes se distinguem dos deístas
providencialistas, que creem não só na existência e no poder criador de Deus,
na origem das coisas, como também na sua intervenção incessante na criação; a
Deus, os últimos oram, mas não admitem o culto exterior e os dogmatismos.[ii] Pode-se pensar, portanto, que Deus atua sem
cessar. Mediante leis imutáveis, é verdade; por meio de inumerável cooperação
espiritual, sem dúvida. Mas daí resulta que se ausente quando suas leis se
cumpram e seus prepostos ajam? Se as divinas leis se executam e seus
colaboradores se movimentam para tanto, isso se verifica por força de quê? Não
é por determinação da própria inteligência suprema?
Ante o mais grave aspecto da lei moral do
universo, os espíritos não usaram de meias palavras e disseram que a pena de
talião é a justiça de Deus; que é ele, conforme nossos erros, quem a aplica,
nesta ou numa outra vida; que fazer sofrer nossos semelhantes nos levará a
situações em que poderemos sofrer outro tanto.[iii] Pari passu, ensinaram que Deus não
proclama julgamentos contra os infratores de suas leis; que, por outra, as
punições resultam naturalmente das infrações.[iv] Dizem
alguns que isso, no entanto, já não seria uma ação de Deus, sim de suas leis. A
meu ver, um sofisma que empresta insustentável dicotomia ao caso. Deus não se
isola da divina lei; está agindo nela e por ela. Caso o deísmo providencialista
da doutrina espírita mal nos sirva, poderemos optar pelo deísmo independente do
Albert Einstein de 1929: “Acredito no Deus de Espinosa, revelado na harmonia de
tudo o que existe, mas não em um Deus que se preocupa com o destino e as ações
dos homens”.[v] O fato é que o extremo veredicto
de certos juízos faz de tudo antropomorfismo. Deixemo-lo à mitologia; do
contrário, até a clássica resposta sobre Deus a Kardec terá sido
antropomórfica; ou porventura a inteligência não é mais atributo do homem?
[i] Cap. II, ns. 8 e 34. Cf. O Livro dos
Espíritos, 10, 11; e 17 a 20.
[ii] Obras Póstumas. As cinco alternativas da
humanidade. III – doutrina deísta.
[iii] O Livro dos Espíritos, 764.
[iv] O Livro dos Espíritos, 964.
[v] GLEISER, M. O Deus de Einstein. Folha de
São Paulo, 10 de abril de 2005.
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