Quando criança, em pleno ambiente escolar,
recebendo aula de catecismo, sendo abordado o tema das penas eternas, fiz, de
súbito, a seguinte pergunta ao professor, um jovem clérigo: “Padre, se eu for
para o céu e a minha genitora para o inferno, poderei ser feliz, sabendo que a
minha mãe está em sofrimento? ”
O sacerdote fitou-me, com grande expressividade
e se manteve calado, durante algum tempo. Desconhecia, na época, por estar na
fase infantil que, em verdade, tinha dado um “piparote” no dogmatismo milenar.
O religioso, um pouco desconcertado, olhava-me
surpreso, sem saber o que falar. Após alguns minutos que me pareceram horas,
assim me respondeu: “Menino, no paraíso, os salvos se tornam seres angelicais.
Lá, não há mais lembrança do passado, já que todos se transformam em novas
criaturas”.
Prontamente, redargui: “Reverendo, é impossível
que, no céu, as pessoas sejam submetidas a uma lavagem cerebral. Não acho bom
perder a minha individualidade e esquecer do que fui e do que fiz”. O clérigo,
não muito firme nos seus argumentos, disse-me que o esquecimento do pretérito é
importantíssimo para que possam gozar os eleitos das delícias do Éden. Então,
perguntei-lhe o seguinte: “O que se faz no céu? A resposta veio, incisiva e
incomodativa: “Os seres tocam harpa e cantam hinos por toda a eternidade”.
Que tristeza! De imediato, lembrei-me das
minhas aulas chatérrimas de acordeão, muito horripilantes, uma fase terrível na
minha infância, quando meu pai desejava fazer-me um músico, o que certamente
não estava nos meus planos reencarnatórios, porquanto, desde então, a carreira
exclusiva da medicina me fascinava. A ideia de harpear, nas paragens
celestiais, por todo o sempre, deixara-me assustado e indeciso quanto a ser
realmente proveitoso habitar eternamente em uma região paradisíaca. Ainda por
cima, a informação de que estaria também a entoar indefinidamente cânticos de
veneração e louvor a Deus.
O pior de tudo era o fato de ter que ficar
privado para sempre do meu passado e nada poder fazer, então, em benefício de
minha genitora. Indignado, muito contrariado e insatisfeito com a resposta do
sacerdote, disse-lhe que preferia ser enviado ao inferno, desde que lá estaria
com a minha mãe e permaneceria com a memória integral. O religioso, então, nada
mais tinha a falar. Mesmo sendo eu uma criança, os argumentos, calcados na
razão e no bom senso, utilizados por mim, deixaram-lhe atônito.
O QUE SÃO CÉU E INFERNO?
Em realidade, céu e inferno são estados de
consciência. Pode-se até mesmo, em plena vida física, experimentá-los. Após a
morte, são sentidos em grande proporção. O espírito vivenciará a alegria pelo
bem que logrou criar ou a tristeza, até mesmo o desespero, pelo que causou de
mal a outrem. Contudo, o Mestre Jesus ensina que a prisão não será eterna e
haverá meios de serem resgatadas as faltas (Mateus 5:26).
O estado de consciência em juízo aguarda a
todos os seres que se adentram na dimensão extrafísica, libertos dos liames
terrenos através do fenômeno da morte. O sofrimento resultante do implacável
remorso não tem duração indefinida, conforme ressaltou o Cristo. Através da
reencarnação, o “nascer de novo”, todos os filhos de Deus têm a oportunidade de
reparar suas faltas passadas e retificar suas condutas em relação à vida e ao
próximo.
A doutrina palingenésica, ensinada por Jesus e
anatematizada pelas igrejas tradicionais, reflete a justiça e misericórdia do
Pai, definido como amor no Evangelho (1-João 4:8), o qual não punirá, de forma
alguma, para todo o sempre, o fruto de Sua Criação. O Espiritismo, dando a
conhecer a reencarnação, concede à Humanidade consolo e esperança, porquanto se
alguém goza de um estado consciencial feliz, ou seja, vivenciando o paraíso,
certamente tudo fará para que o próximo seja ajudado a encontrar também a paz e
a ventura.
Se o diálogo que travei com o padre fosse com
um profitente espírita, tenho a certeza de que obteria uma resposta
satisfatória, porquanto ele poderia me tranquilizar, dizendo-me que Deus
concede a todas as criaturas Sua Eterna Misericórdia e minha mãe, em
sofrimento, inclusive poderia obter o ensejo do refazimento através da minha
própria ajuda.
A Doutrina Espírita, igualmente, ensina que não
se perde a individualidade e, nem pelo fato de ter morrido o corpo, o espírito
se modifica, no além. O que o homem é, na dimensão física, também será depois
da morte, com os mesmos defeitos e virtudes.
É preciso frisar que o fato de ter citado minha
genitora como exemplo de alguém muito especial destinado ao “inferno”, não
tinha cabimento, na realidade. Minha mãe foi, em vida, uma pessoa excepcional e
a mencionei, em tese, pois que poderia ter dado como modelo qualquer outro
parente ou amigo. Em verdade, a Humanidade é uma imensa família, constituída de
bilhões de irmãos, filhos de Deus.
PECADO ORIGINAL OU REENCARNAÇÃO?
Conforme ia crescendo, vivenciando a prática
católica e depois a crença evangélica, outro conceito dogmático, em desacordo
com a razão reencarnacionista, foi igualmente questionado, como a teoria do
pecado original, de valor essencialmente discutível, desde que o erro primário
de desobediência de um antepassado remoto, chamado Adão, não pode justificar o
porquê espiritual do nascimento de seres monstruosos, alguns vindo a lume
desprovidos de cérebros (anencéfalos). Concomitantemente vêm, ao mundo, indivíduos
sem problemas físicos e mentais, não havendo lógica nem legitimidade nesse
preceito religioso vetusto e ultrapassado.
Recordo-me, quando estudante de medicina,
ajudando a um obstetra, em um trabalho de parto, ao examinar o recém-nato,
verifiquei que o mesmo não apresentava os globos oculares. Ao mesmo tempo,
outra criança nascia ao lado perfeitamente normal.
Dois filhos de Deus nascendo, no mesmo
instante, ostentando um deles a desarmonia, enquanto o outro se revelava
íntegro. Sem a doutrina reencarnacionista, não há justificativa para as
vicissitudes da vida. O mundo passa a ser o caos, presidido por fatores
casuais. Daí o motivo para o significativo ateísmo hodierno, principalmente em
terras europeias, não aceitando a fragilidade dos argumentos dogmáticos e,
consequentemente, repudiando a fé cega, chegando ao cúmulo de negar a marcante
presença da Paternidade Divina.
ALGUMAS PROVAS DA REENCARNAÇÃO NO EVANGELHO DE
JESUS
Confrontando-se com a Teologia Escolástica e
aliado à Doutrina Espírita, vem o Evangelho de Jesus esclarecer todos os
enigmas, interpretados à luz da verdade, sob a revelação do “espírito que
testifica”, negando o literalismo que “mata” (2 Coríntios 3:6). Assim como
Mateus, o evangelista Marcos, igualmente traz à tona a explicação espiritual
para as lesões teratológicas verificadas no nascimento e não compreendidas no
dogmatismo: “Ai do mundo por causa dos escândalos! Eles são inevitáveis, mas ai
do homem que os causa! Por isso, se tua mão ou teu pé te fazem tropeçar,
corta-os e lança-os longe de ti: é melhor para ti entrares na vida coxo ou
manco que, tendo dois pés e duas mãos, seres lançados no fogo eterno. Se teu
olho te faz tropeçar, arranca-o e lança-o longe de ti: é melhor para ti
entrares na vida cego de um olho que seres jogado com teus dois olhos no
inferno de fogo” (Mateus 18:7-9).
Incontestavelmente, esses versículos demonstram
a reencarnação. A afirmação de que é “inevitável que venham escândalos”,
corrobora o ensino espírita de que a Terra é um mundo de provas e expiações,
onde a criatura granjeia aquisições e experiências e resgata seus débitos
(“entrar na vida manco ou cego”).
O Evangelho de João aborda, no capítulo nove,
versículo três, com grande propriedade, uma das funções do sofrimento, a de
desenvolver vitalidade espiritual: “Nem ele (o cego de nascença) pecou, nem
seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus”. Bem marcante,
nesse caso, que a cegueira não foi devida a algum antepassado, um anátema
contra o pecado original; como também ressalta que essa deficiência visual
congênita não é resultante de uma expiação, ou seja, o resgate de um erro
cometido no pretérito (“não sairás da prisão, enquanto não pagares o último
ceitil”). Aqui se trata de uma prova, de um acontecimento doloroso servindo como
um teste para instrução do espírito, solicitado por ele próprio na
espiritualidade.
Lendo o restante dos textos evangélicos, pode
constatar-se a evidência de ter o ex-cego conquistado maior aprendizado
espiritual, já que enfrentou com galhardia os fariseus, dando um corajoso
testemunho de Jesus (João 9:26-34).
Ao mesmo tempo, não poderia deixar de
mencionar, de forma mais abrangente, a outra utilidade da dor: fazer resgatar
as faltas pretéritas, através do “nascer de novo” ou reencarnação.
A lei de “Causa e Efeito” ou “Ação e Reação”
anuncia, de maneira magistral e exuberante, a justiça divina: o que o homem
lograr criar de bom ou de mal repercute em sua própria vestimenta espiritual,
vincando o períspirito com harmonia ou desajuste. Em caso do uso indevido do
livre-arbítrio, a lesão marcada no períspirito predisporá o aparecimento de
determinada enfermidade na estrutura física: “O que o homem semear na carne, da
carne ceifará a corrupção (Gálatas 6:8). Tendo diante de si a eternidade, sendo
portador da imortalidade, a criatura poderá retificar seus próprios equívocos
de ontem e preparar-se para alçar os grandes voos do amanhã, deixando de lado o
sofrimento exuberante, descrito de forma alegórica como “inferno de fogo”, o
qual, quando vivenciado na dimensão extrafísica, tem a aparência de consumir
pela eternidade, que nunca mais cessará.
Em outro episódio evangélico, o Mestre diz ao
ex-paralítico: “Olha que já estás curado; não erres mais, para que não te
aconteça coisa pior” (João 5:14). Bem lógica a afirmativa de que o homem não
sofria devido a erros cometidos por um remotíssimo antecedente como Adão. Sem a
explicação ministrada pela doutrina reencarnacionista, tudo se apresenta
confuso, sem lógica e bom senso. A palingênese nos revela uma Paternidade Divina
extremamente amorosa, proporcionando, através de Suas justas leis, o
aprimoramento devido e paulatino das criaturas.
Disse William Shakespeare: “No mesmo instante
em que recebemos pedras em nosso caminho, flores estão sendo plantadas mais
longe. Quem desiste não as vê”.
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