No dia 31/03/1869, numa noite de inverno em
Paris, enquanto dava continuidade aos estudos que publicava regularmente na
Revista Espírita e ensaiava um estudo comparativo entre Magnetismo e
Espiritismo, desencarna Allan Kardec, vitimado pelo rompimento de um aneurisma
de artéria coronária. Desenlace inesperado, conquanto já predito sem fixação de
data numa das reuniões na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, alcançou
de surpresa os já milhares de adeptos por toda a Europa e além daquele
continente.
A
labuta que se encerrava naquele momento de transferência para o mundo espiritual
havia demorado aproximados 12 anos desde a publicação de O Livro dos Espíritos,
mas a intensidade com que se lançou ao trabalho de pensar, escrever, publicar e
divulgar a Doutrina Espírita já lhe tinham custado advertências dos amigos
espirituais sobre o risco de exaustão física, tamanha a entrega de tempo com
que se dedicava à nova doutrina. Além de ter ocupado os períodos pelo dia
avançava madrugada adentro em suas elucubrações e pesquisas.
Não
fossem as dificuldades de naturais em fazer resplandecer um conjunto de idéias
que traziam conteúdo de grande originalidade para o pensamento humano, a sua
labuta também exigia um grau de exposição às tensões advindas da perquirição da
classe científica atordoada com a invasão do espiritualismo científico
(sintetizados em O Livro dos Médiuns) e principalmente pelo linchamento
protagonizado pelas cúpulas religiosas que, longe dos princípios da tolerância
cristã, investia com ódio explosivo sobre a sua própria segurança pessoal. Exposto
a uma verdadeira escalada de confrontações valeu-se da formação acadêmica
acumulada em toda a sua vida anterior à codificação do Espiritismo, o que lhe
permitiu abrangência e consistência para anunciar um conjunto de reflexões que
se demonstraram um antídoto de uma só vez ao ateísmo científico tanto quanto ao
fanatismo religioso.
Despedindo-se
no planeta, da condição de encarnado, para povoar o mundo das formas sutis,
donde certamente ainda permanece orientando os caminhos dos estudos espíritas,
Allan Kardec deixou como legado aos adeptos contemporâneos muito mais do que os
registros escritos em toda a sua bibliografia doutrinária. A sua biografia se
impõe pela austeridade de investigador aliada a sua flexibilidade científica,
fatores que convergiram de forma decisiva para se manter aberto ao novo
representado pelos fenômenos metafísicos sem que se perdesse no deslumbramento
de aceitação destituída da razoabilidade.
Essas
duas qualidades, a austeridade investigativa e a flexibilidade científica,
podem ser vistas como legado aos espíritas do presente, a fim de que evitemos
os descaminhos próprios de quem aceita os atalhos por preguiça de enfrentar o
caminho. A Doutrina Espírita é um fenômeno sócio-espiritual que exige atenção
redobrada para os riscos de enxertias doutrinárias e de engodos civilizatórios.
Os espíritas sabem que o mundo espiritual é a casa que nos espera, mas dá o
devido valor à existência nesse planeta, ao qual se propõe a cuidar tanto
quanto do próprio corpo, desdobrando-se no respeito ao outro e aceitação das
liberdades individuais como proposta de evolução da sociedade. Mais que
escrever livros Allan Kardec despertou consciências e saiu da Terra ovacionado
pelos seus pares como “o bom senso encarnado”, nas palavras de Camille
Flamarion.
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