quarta-feira, 6 de novembro de 2019

ESPIRITISMO E UNIVERSIDADE (LIVRE PAMPÉDIA): QUE DIÁLOGO É ESSE?





  
Para começarmos a conversa, temos que recorrer a Kardec e recuperar quais eram suas intenções ao fundar o Espiritismo (isso mesmo, fundar e não codificar, porque Kardec não foi mero secretário dos Espíritos, organizador de uma revelação dada, como aliás também sublinhou Alexander Moreira-Almeida, presente no evento, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e colaborador de nossa rede há muitos anos). O que Kardec fez foi 1) Pesquisar os fenômenos mediúnicos; 2) Elaborar uma teoria explicativa para esses fenômenos (testando várias hipóteses); 3) Formular uma filosofia a partir das evidências empíricas da mediunidade e 4) Derivar uma proposta ética a partir da ciência e da filosofia espíritas. E com isso, ele inaugurou uma forma de espiritualidade (ou religiosidade) livre, não formal, não institucional.


Mas… chegando ao Brasil, no caldo cultural católico de nosso país, o Espiritismo se tornou uma religião, que hoje, pela sua extensão e representatividade, é um fenômeno sociológico, que atrai pesquisadores não-espíritas brasileiros e internacionais.

Desde o início, porém, houve intelectuais espíritas brasileiros que, aceitando ou não, o lado religioso do Espiritismo, alertaram que a proposta de Kardec era muito mais voltada para a pesquisa, para a elaboração racional e, se religiosa, teria de ser entendida como algo livre de instituições e intermediações, desligada de dogmas e atavismos das religiões tradicionais.

Que há uma gritante diferença entre a proposta de Kardec e o que se tornou o Espiritismo no Brasil, é uma tese comum a intelectuais espíritas como Herculano Pires e a pesquisadores não-espíritas, como Marion Aubrée (uma das autoras do livro La Table, Le livre et Les Esprits), aliás presente no evento, e Sandra Jacqueline Stoll (autora da tese Espiritismo à Brasileira e citada por mim na palestra).

O que houve aqui foi um sincretismo com o catolicismo, desde a sua chegada na Bahia, com Olympio Telles de Menezes, que anunciou já no primeiro jornal publicado então, que era um “espírita-católico”.

Ocorre que, nas últimas décadas, cada vez mais, os espíritas estão chegando às Universidades e percorrendo caminhos de mestrado, doutorado e pesquisa e então, pelo acento excessivamente religioso (leia-se dogmático) de sua origem espírita, se dividem em dois caminhos: ou se tornam materialistas, assumindo plenamente as ideologias propostas pela academia, ou dão voz à pesquisa espírita, mas relendo o Espiritismo, de uma perspectiva mais científica e filosófica e, com isso, se aproximando mais de Kardec.

O diálogo entre Universidade e Espiritismo tem crescido consideravelmente desde a década de 90, quando Cleusa Beraldi Colombo (por acaso minha mãe), defendeu na PUC, uma das primeiras dissertações de mestrado sobre o tema no Brasil, que depois foi publicada como Ideias Sociais Espíritas. Evidência desse crescimento é que só na rede de professores da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, há mais de 10 mestres e doutores, com pesquisas acadêmicas relacionadas com o Espiritismo.

Mas que formas tomam esse diálogo no Brasil e internacionalmente? Abaixo, estão alguns exemplos, longe de rastrear todas as formas de pesquisa que envolvem o Espiritismo ou temas afins.

1) Pesquisa histórica, sociológica e antropológica (com olhar de fora). Exemplos são as pesquisadoras já mencionadas Marion Aubrée, Sandra Jacqueline Stoll e podemos citar outros, como Bernardo Lewgoy e David Hess. Para os espíritas, essas pesquisas são ao mesmo tempo incômodas e enriquecedoras. Incômodas, porque é sempre estranho quando nos tornamos objeto de pesquisa, ainda que haja empatia do pesquisador. Enriquecedoras, porque esse olhar pode dizer coisas de nós, que não percebemos com nosso olhar viciado, de dentro.

2) Espíritas pesquisando seu objeto, dando voz às ideias sociais, filosóficas, pedagógicas com influência do Espiritismo. Isso só é possível e ético, se o assumir a voz espírita num discurso acadêmico não se faz de maneira proselitista, dogmática, mas com integridade intelectual e critério científico. Assim como há pesquisadores marxistas, tomistas, freudianos, lacanianos, etc, nada impede que haja pesquisadores espíritas (a não ser o patrulhamento ideológico). Nesse caso, enumero alguns trabalhos acadêmicos, todos publicados pela Editora Comenius: o já citado Ideias Sociais Espíritas; minha própria tese de doutorado na USP, Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes; a pesquisa de mestrado Eurípedes Barsanulfo, um educador de vanguarda na Primeira República, de Alessandro Cesar Bigheto na Unicamp; Anália, a educadora e seu tempo, um livro que reúne duas dissertações de mestrado, uma de Eliane de Christo (USF) e outra de Samantha Lodi (Unicamp); e os três livros de André Andrade Pereira, desdobramento de uma só tese de doutorado da Universidade Federal de Juiz de Fora, Espiritismo e Religiões, Espiritismo e Budismo e Espiritismo e Globalização.

3) Pesquisas, cujo objeto são os fenômenos ligados ao Espiritismo (reencarnação, mediunidade, experiências quase-morte, etc.), que podem ser feitas por pesquisadores de origem espírita ou não, brasileiros e internacionais. Exemplos são as pesquisas de memórias espontâneas de crianças de suas supostas vidas passadas. Iniciadas há 50 anos por Ian Stevenson, na Universidade de Virginia e apoiadas e depois continuadas por Erlendur Haraldson, Antonia Mills, Jim Tucker e, no Brasil, por Hernani Guimarães de Andrade, atingiram a marca de 2.500 casos, que fornecem evidências fortes da reencarnação. Outro exemplo é a brilhante pesquisa sobre mediunidade, realizada por Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida e Andrew Newberg (esse da Universidade d Pennsylvania) com dez médiuns psicógrafos, onde seus cérebros (aliás nossos cérebros, porque fiz parte!) foram escaneados, enquanto ocorria o fenômeno da psicografia e, depois, enquanto era redigido um texto autoral.

(As referências sobre essa pesquisa estão em: Neuroimaging during Trance State: A Contribution to the Study of Dissociation, November 16, 2012 DOI: 10.1371/journal.pone.0049360, PLOS Collections)

4) Espaços livres de pesquisa e debate no próprio movimento espírita brasileiro. Exemplos são a Associação Médico-Espírita, A Liga de Pesquisadores Espíritas, A Associação Jurídico-Espírita e a nossa Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.

A Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, como o leitor provavelmente já sabe, tem há 10 anos um curso de pós-graduação em Pedagogia Espírita, com professores mestres e doutores; realizou 5 Congressos Brasileiros de Pedagogia Espírita e 2 Congressos Internacionais de Educação e Espiritualidade, todos com caráter científico, reunindo especialistas em várias áreas, com publicação de Anais, livros com artigos dos convidados nacionais e internacionais. Em todos os cursos, eventos, livros e propostas, sempre propusemos a produção de conhecimento em diálogo inter-religioso, plural, respeitando a diversidade e jamais promovendo catequese ou doutrinação.

Agora, estamos lançando a Universidade Livre Pampédia, que é resultado de todas essas ações da ABPE, da Editora Comenius, dessa rede imensa de professores, autores, pesquisadores, militantes de uma nova abordagem do conhecimento, que inclua a dimensão espiritual do ser humano.

Que diálogo existe entre a Universidade Livre Pampédia e o Espiritismo? Aqui, o Espiritismo tem voz, como têm outras correntes de pensamento. Aqui, o Espiritismo pode dialogar com outras correntes de pensamento de igual para igual. Aqui, acolhemos quem estuda Espiritismo de fora (por exemplo, Sandra Jacqueline Stoll é professora de nossa pós), como quem estuda de dentro (sem dogmatismo). Aqui é um lugar plural, porque o próprio Espiritismo, que queria Kardec, é uma ideia universalista, aberta, dinâmica e posta em diálogo com a cultura de cada tempo histórico em que se insere.

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