Para começarmos a conversa, temos que
recorrer a Kardec e recuperar quais eram suas intenções ao fundar o Espiritismo
(isso mesmo, fundar e não codificar, porque Kardec não foi mero secretário dos
Espíritos, organizador de uma revelação dada, como aliás também sublinhou
Alexander Moreira-Almeida, presente no evento, professor da Universidade
Federal de Juiz de Fora e colaborador de nossa rede há muitos anos). O que
Kardec fez foi 1) Pesquisar os fenômenos mediúnicos; 2) Elaborar uma teoria
explicativa para esses fenômenos (testando várias hipóteses); 3) Formular uma
filosofia a partir das evidências empíricas da mediunidade e 4) Derivar uma
proposta ética a partir da ciência e da filosofia espíritas. E com isso, ele
inaugurou uma forma de espiritualidade (ou religiosidade) livre, não formal,
não institucional.
Mas… chegando ao Brasil, no caldo cultural
católico de nosso país, o Espiritismo se tornou uma religião, que hoje, pela
sua extensão e representatividade, é um fenômeno sociológico, que atrai
pesquisadores não-espíritas brasileiros e internacionais.
Desde o início, porém, houve intelectuais
espíritas brasileiros que, aceitando ou não, o lado religioso do Espiritismo,
alertaram que a proposta de Kardec era muito mais voltada para a pesquisa, para
a elaboração racional e, se religiosa, teria de ser entendida como algo livre
de instituições e intermediações, desligada de dogmas e atavismos das religiões
tradicionais.
Que há uma gritante diferença entre a
proposta de Kardec e o que se tornou o Espiritismo no Brasil, é uma tese comum
a intelectuais espíritas como Herculano Pires e a pesquisadores não-espíritas,
como Marion Aubrée (uma das autoras do livro La Table, Le livre et Les Esprits),
aliás presente no evento, e Sandra Jacqueline Stoll (autora da tese Espiritismo
à Brasileira e citada por mim na palestra).
O que houve aqui foi um sincretismo com o
catolicismo, desde a sua chegada na Bahia, com Olympio Telles de Menezes, que
anunciou já no primeiro jornal publicado então, que era um “espírita-católico”.
Ocorre que, nas últimas décadas, cada vez
mais, os espíritas estão chegando às Universidades e percorrendo caminhos de
mestrado, doutorado e pesquisa e então, pelo acento excessivamente religioso
(leia-se dogmático) de sua origem espírita, se dividem em dois caminhos: ou se
tornam materialistas, assumindo plenamente as ideologias propostas pela
academia, ou dão voz à pesquisa espírita, mas relendo o Espiritismo, de uma
perspectiva mais científica e filosófica e, com isso, se aproximando mais de
Kardec.
O diálogo entre Universidade e Espiritismo
tem crescido consideravelmente desde a década de 90, quando Cleusa Beraldi
Colombo (por acaso minha mãe), defendeu na PUC, uma das primeiras dissertações
de mestrado sobre o tema no Brasil, que depois foi publicada como Ideias
Sociais Espíritas. Evidência desse crescimento é que só na rede de professores
da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, há mais de 10 mestres e
doutores, com pesquisas acadêmicas relacionadas com o Espiritismo.
Mas que formas tomam esse diálogo no Brasil e
internacionalmente? Abaixo, estão alguns exemplos, longe de rastrear todas as
formas de pesquisa que envolvem o Espiritismo ou temas afins.
1) Pesquisa histórica, sociológica e
antropológica (com olhar de fora). Exemplos são as pesquisadoras já mencionadas
Marion Aubrée, Sandra Jacqueline Stoll e podemos citar outros, como Bernardo
Lewgoy e David Hess. Para os espíritas, essas pesquisas são ao mesmo tempo
incômodas e enriquecedoras. Incômodas, porque é sempre estranho quando nos
tornamos objeto de pesquisa, ainda que haja empatia do pesquisador.
Enriquecedoras, porque esse olhar pode dizer coisas de nós, que não percebemos
com nosso olhar viciado, de dentro.
2) Espíritas pesquisando seu objeto, dando
voz às ideias sociais, filosóficas, pedagógicas com influência do Espiritismo.
Isso só é possível e ético, se o assumir a voz espírita num discurso acadêmico
não se faz de maneira proselitista, dogmática, mas com integridade intelectual
e critério científico. Assim como há pesquisadores marxistas, tomistas,
freudianos, lacanianos, etc, nada impede que haja pesquisadores espíritas (a
não ser o patrulhamento ideológico). Nesse caso, enumero alguns trabalhos
acadêmicos, todos publicados pela Editora Comenius: o já citado Ideias Sociais
Espíritas; minha própria tese de doutorado na USP, Pedagogia Espírita: um
projeto brasileiro e suas raízes; a pesquisa de mestrado Eurípedes Barsanulfo,
um educador de vanguarda na Primeira República, de Alessandro Cesar Bigheto na
Unicamp; Anália, a educadora e seu tempo, um livro que reúne duas dissertações
de mestrado, uma de Eliane de Christo (USF) e outra de Samantha Lodi (Unicamp);
e os três livros de André Andrade Pereira, desdobramento de uma só tese de
doutorado da Universidade Federal de Juiz de Fora, Espiritismo e Religiões,
Espiritismo e Budismo e Espiritismo e Globalização.
3) Pesquisas, cujo objeto são os fenômenos
ligados ao Espiritismo (reencarnação, mediunidade, experiências quase-morte,
etc.), que podem ser feitas por pesquisadores de origem espírita ou não,
brasileiros e internacionais. Exemplos são as pesquisas de memórias espontâneas
de crianças de suas supostas vidas passadas. Iniciadas há 50 anos por Ian
Stevenson, na Universidade de Virginia e apoiadas e depois continuadas por
Erlendur Haraldson, Antonia Mills, Jim Tucker e, no Brasil, por Hernani
Guimarães de Andrade, atingiram a marca de 2.500 casos, que fornecem evidências
fortes da reencarnação. Outro exemplo é a brilhante pesquisa sobre mediunidade,
realizada por Julio Peres, Alexander Moreira-Almeida e Andrew Newberg (esse da
Universidade d Pennsylvania) com dez médiuns psicógrafos, onde seus cérebros
(aliás nossos cérebros, porque fiz parte!) foram escaneados, enquanto ocorria o
fenômeno da psicografia e, depois, enquanto era redigido um texto autoral.
(As referências
sobre essa pesquisa estão em: Neuroimaging during Trance State: A Contribution
to the Study of Dissociation, November 16, 2012 DOI:
10.1371/journal.pone.0049360, PLOS Collections)
4) Espaços livres de pesquisa e debate no
próprio movimento espírita brasileiro. Exemplos são a Associação
Médico-Espírita, A Liga de Pesquisadores Espíritas, A Associação
Jurídico-Espírita e a nossa Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
A Associação Brasileira de Pedagogia
Espírita, como o leitor provavelmente já sabe, tem há 10 anos um curso de
pós-graduação em Pedagogia Espírita, com professores mestres e doutores;
realizou 5 Congressos Brasileiros de Pedagogia Espírita e 2 Congressos
Internacionais de Educação e Espiritualidade, todos com caráter científico,
reunindo especialistas em várias áreas, com publicação de Anais, livros com
artigos dos convidados nacionais e internacionais. Em todos os cursos, eventos,
livros e propostas, sempre propusemos a produção de conhecimento em diálogo
inter-religioso, plural, respeitando a diversidade e jamais promovendo
catequese ou doutrinação.
Agora, estamos lançando a Universidade Livre
Pampédia, que é resultado de todas essas ações da ABPE, da Editora Comenius,
dessa rede imensa de professores, autores, pesquisadores, militantes de uma
nova abordagem do conhecimento, que inclua a dimensão espiritual do ser humano.
Que diálogo existe entre a Universidade Livre
Pampédia e o Espiritismo? Aqui, o Espiritismo tem voz, como têm outras
correntes de pensamento. Aqui, o Espiritismo pode dialogar com outras correntes
de pensamento de igual para igual. Aqui, acolhemos quem estuda Espiritismo de
fora (por exemplo, Sandra Jacqueline Stoll é professora de nossa pós), como
quem estuda de dentro (sem dogmatismo). Aqui é um lugar plural, porque o
próprio Espiritismo, que queria Kardec, é uma ideia universalista, aberta,
dinâmica e posta em diálogo com a cultura de cada tempo histórico em que se
insere.
Sempre um surpreendente texto!!Parabéns @DoraIncontri!!!!!
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