Homenagear Kardec no dia do seu aniversário é
tecer reflexões sobre a pertinência de ainda nos dizermos espíritas kardecistas
em pleno século XXI, quando muitas das ideias defendidas em seus livros estão
hoje distantes do horizonte acadêmico, rejeitadas e consideradas envelhecidas
pela filosofia contemporânea.
Kardec permaneceu no limbo da ciência, da
filosofia e da espiritualidade. Filósofos não o reconhecem como tal, cientistas
declaram com desprezo que o espiritismo é uma pseudociência e as tradições
espirituais muitas vezes excluem o espiritismo de um reconhecimento para um
diálogo.
Então, ainda vale seguir Kardec?
A questão se resume no seguinte: ou
sobrevivemos à morte e podemos nos comunicar com os que ficaram ou a morte é o
final de tudo. Admitida e primeira hipótese, as ideias que Kardec dela derivou
– e que hoje são banidas da filosofia contemporânea – podem ser defendidas
facilmente. Entre elas, a existência de Deus, o evolucionismo, com uma
teleologia na história e da natureza, uma conexão espiritual entre todos os
seres do universo, uma ética de se colocar os valores espirituais acima da
ganância terrena, e assim por diante.
Kardec pensava haver reunido evidências
suficientes de que a vida continua e de que os espíritos se comunicam. Outros
depois dele percorreram o mesmo caminho na segunda metade do século XIX e
início do século XX e chegaram à mesma conclusão, como William Crookes, Russel
Wallace, Gustave Geley, Friedrich Zölnner e tantos mais. No século XX, temos,
por exemplo, a importante pesquisa de Ian Stevenson, com robustas evidências da
reencarnação. Mas esses e outros pesquisadores de ontem e de hoje foram tão
silenciados, ignorados e enjeitados quanto Kardec. A ciência chamada mainstream
não abre espaço para esse tipo de pesquisa, porque ela fere paradigmas
fortemente estabelecidos, porque não é uma ciência fácil de se fazer no
controle e na repetição dos fenômenos mediúnicos, porque não é uma ciência que
traga inovações tecnológicas ou produtos lucrativos e muito menos prestígio
acadêmico. Talvez haja outras hipóteses explicativas dessa exclusão desdenhosa.
Entretanto, para quem é médium desde que
nasceu (como é o meu caso) e vive cercado de fenômenos que outras ciências não
explicam e que poderiam comprometer a saúde mental se não fossem aceitos como
mediúnicos e se não tivéssemos instrumentos para lidar com isso, o espiritismo
deixa de ser uma filosofia do limbo acadêmico, para se tornar uma necessidade e
uma possibilidade de equilíbrio e orientação.
Essa é uma das grandes contribuições de
Kardec: como estava convencido da realidade do mundo espiritual e do
intercâmbio com os espíritos, ele não ficou indefinidamente repetindo
experiências para comprovar os fenômenos e nem sequer parou nessa pesquisa
inicial. Ele tratou de estudar como funcionava aquilo e de oferecer diretrizes
práticas e parâmetros éticos de como lidar com a mediunidade, de maneira
segura, saudável e útil.
E nessa orientação, Kardec foi único. Nunca
ninguém antes dele e ninguém depois dele fez esse trabalho e de forma tão
clara, tão crítica e tão competente. Por isso, acho que o Livro dos Médiuns,
muito pouco estudado e aplicado no movimento espírita brasileiro, é o livro de
Kardec que permanece irretocável.
Os outros trazem uma visão de mundo, uma
filosofia e uma ética que para mim e para muitos fazem sentido, mas precisam
ser relidas com seus contextos históricos e precisam ser transpostas para um
diálogo com problemas de hoje e visões contemporâneas.
Kardec é pois uma referência, um início, uma
base. Um mestre que não se intimidou em querer avançar além da mera apreciação
de um fenômeno, mas quis deixar o resultado de seus diálogos com os espíritos e
uma filosofia coerente, bem articulada, que pudesse nos ajudar a melhorar a nós
mesmos e ao mundo.
Há em Kardec a preocupação do educador, de
tornar as coisas claras, práticas, aplicáveis, úteis. Há a intenção de um
reformador social de querer transformar a sociedade, torná-la mais justa, mais
progressista, mais humana, mais fraterna – dentro do horizonte que era possível
a um discípulo de Pestalozzi na primeira metade do século XIX.
Por isso, releio, revejo, até critico Kardec
em alguns pontos (estou escrevendo um livro sobre toda essa releitura que
faço), mas permaneço espírita kardecista – e hoje temos de adotar sim esse
adjetivo, já que o espiritismo tomou muitas formas em nosso país. Porque o
essencial de Kardec, justamente esse manejo racional e ético da mediunidade,
esse entendimento progressista e pedagógico do mundo e da vida, ainda fazem
muito sentido para mim e considero que ainda não deu o que tinha que dar como
contribuição nesse mundo, porque ainda nem compreendido foi.
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