Anos atrás o pesquisador espírita Clóvis Nunes falou de um suposto
encontro entre Allan Kardec e Karl Marx. Ele se escorou em duas mensagens insertas
em Obras Póstumas, de 30 de abril de
1856 (saiba mais) e de 12 de maio de 1856 (saiba mais). Leia-se um trecho da primeira, em que o Espírito
se refere a um dos presentes, que para Nunes seria Marx:
“A você, Rivail, sua missão está aí
(livre, a cesta virou fortemente para meu lado, como o teria feito uma pessoa
que me indicasse com o dedo). A você, M..., compete a espada que não fere, mas
que mata. Contra tudo o que existe, será você que virá primeiro. Ele, Rivail,
virá em segundo lugar, é o trabalhador que reconstrói o que foi destruído”.
Leia-se o trecho do comentário de Allan Kardec, ao final da mensagem:
“O Sr.
M..., que assistia a essa reunião, era um jovem com as mais radicais
opiniões, comprometido com negócios políticos, obrigado a não se colocar muito
em evidência. Acreditando em uma
agitação próxima, preparava-se para tomar parte e combinava seus planos de
reforma. De resto, era um homem doce e inofensivo.”
O movimento espírita, afeito às novidades, encampou logo a ideia sempre
com aquele propósito desnecessário, de validar o Espiritismo a nomes de destaques.
Na realidade, O Sr. Nunes não apresentou
nenhuma evidência palpável para a sua afirmação, coisa inóspita ao Espiritismo.
Algumas considerações sobre a afirmativa:
a) Karl
Marx residiu em Paris de 1843 a 1845, quando foi expulso da França a pedido do
governo Prussiano;
b) Em
1949, depois de muitas peripécias, Marx e a família chegam à Paris, mas é
proibido de fixar residência em território francês. Graças a uma campanha de
donativos, eles migram para Londres, onde Marx reside até a sua morte, não mais
retornando à França. Seu corpo foi sepultado no Cemitério de Highgate, em Londres;
c) Karl
Marx não é o tipo caracterizado por Allan Kardec em seus comentários: “comprometido com negócios políticos,
obrigado a não se colocar muito em evidência.” Basta-se olhar a sua
tumultuada biografia.
d) Lê-se
na segunda mensagem, falam das boas ideias do Sr. M.... Na sequência, Kardec
indaga se poderia “manter relações de
amizade com ele.” É desaconselhado. Manter
é permanecer. Um encontro fortuito não significa amizade, ainda mais se
tratando das personalidades de Karl Marx e Allan Kardec;
e) Pelos
comentários de Kardec é fácil de compreender que ele conhecia o Sr. M... de há
muito tempo, basta ver a mini biografia de Kardec escrita por Lachâtre,
extraída da obra Nouveau
Dictionaire Universal, editado em 1867;
f) Há
uma breve referência de Marx ao fenômeno das mesas girantes, quando ele faz se
referindo ao fetichismo da mercadoria, na obra O Capital, muito embora ele o qualifique como uma forma de “obscurantismo”,
em comparação ao movimento Taiping na China.
O Sr. M..., de Allan Kardec, pelo que apontam as evidências, é Maurice Lachâtre, o
livreiro e que, poucos sabem, foi sócio de Allan Kardec, quando esse tinha 35
anos, em um Banco, mas especificamente, uma cooperativa de crédito, denominada “Sociedade Delachâtre e Rivail.” Logo em
seguida Lachâtre se estabelece como livreiro. Através de Lachâtre é que Kardec
teve contato com as ideias de Karl Marx, e que são consideradas na reunião
mediúnica.
Ainda jovem, Maurice Lachâtre esposou as ideias de Saint-Simon, um dos
primeiros socialistas utópicos, falecido em 1825. Pela sua discrição, tornou-se
um discípulo à margem, não havendo registro dele nas listas dos afiliados mais conhecidos.
Sozinho, ele saiu a pregar as ideias saint-simonianas pelas estradas da França.
Há uma convergência nos pensares de Lachâtre e Kardec, enquanto
coexistiam ideias revolucionárias, homeopatia, feminismo, magnetismo, vidência
e que enriqueciam o primeiro socialismo.
A relação de amizade entre os dois era tão forte que no ano de 1850
nasceu a primeira filha de Lachâtre e recebeu o nome de Amélie, sem sombra de dúvidas,
em homenagem a doce Gabi, esposa de Kardec, que assim se chamava.
Maurice, durante a segunda República, escreveu duas obras publicadas em
1849. A primeira, O exército, sua
organização, seus direitos, seus deveres, é uma crítica da instituição
militar e uma proposta de reforma; a segunda, A república democrática e social. Exposição de princípios socialistas e
sua aplicação imediata na França é uma síntese da maior parte das correntes
socialistas de meados do século XIX.
Um fato marcante ocorreu em 1851 quando Lachâtre se tornou amigo de
Pierre-Joseph Proudhon, filósofo político e econômico francês: foi membro do
Parlamento Francês e um dos pais do anarquismo e do mutualismo,
Proudhon atraiu a atenção de Karl Marx e começaram a trocar
correspondências. Os dois se influenciaram mutuamente. Encontraram-se em Paris
por ocasião do exílio de Marx. Marx traduziu obras de Proudhon para vários
idiomas. A amizade de ambos finalmente chegou ao fim quando Marx respondeu ao
seu texto Sistemas de contradições
econômicas ou Filosofia da miséria com outro provocadoramente intitulado Miséria da Filosofia. Proudhon
acreditava que a revolução social poderia ser alcançada de forma pacífica.
No ano seguinte, Lachâtre que acalentava o ideal de ser um reformador social, colocou em prática
suas ideias e, ao mesmo tempo, combater
o regime com o livro. (grifos nossos). Aliás, esse assunto é tratado por
Kardec com o Espírito da Verdade, que, segundo Lachâtre, foi ouvido através de
uma médium essas previsões.
“(...) Acreditando em uma agitação
próxima, preparava-se para tomar parte e combinava seus planos de reforma.
(...).”
Seus projetos sociais se desenvolvem no vilarejo de Arbanats. Nesse
período, ele dividiu seu domínio e o vendeu em parcelas com condições
acessíveis a todos. 102 pessoas compraram os terrenos, beneficiando-se de um
crédito de mais de trinta anos, numa época em que o sistema bancário não
existia. Para viabilizar esse serviço ele criou um banco de trocas, inspirado
no Banco do Povo de Proudhon. Seu projeto foi global. Ele quis fundar no
vilarejo uma comuna-modelo. Seu
propósito foi de multiplicá-la e inseri-la no conjunto da nação.
Lachâtre soube entretecer canais muitos diversos. Contudo, tantas ações
suas irritaram o poder e os protetores não puderam garanti-lo por mais tempo. O
poder atingiu o livreiro através de suas publicações.
Iniciado em 1851 e só acabado em 1857, juntamente com o início do Espiritismo, preparou um Dicionário do Povo, que quando da sua
publicação recebeu o nome de Dicionário
Universal. Na obra, ele reuniu uma dúzia de editores que, em sua maioria,
participaram da Revolução de 1848 e eram opositores do Império. Foram adeptos
dos socialistas utópicos, Charles Fourier e Saint-Simon, militantes do
mutualismo e da cooperação. A obra aborda temas marcantes, inclusive sobre o
fenômeno das mesas girantes. As teses comunistas são nele defendidas:
“Restitui aos proletários os instrumentos
de trabalho, sobretudo a terra, e transformará a economia pública de tal forma
que o ganho, os frutos e a riqueza só se acumularão de maneira justa e em razão
do trabalho de fato”.
Lachâtre enfrentou problemas com a publicação dos Mistérios do Povo, de Eugene Sue, que se convertera ao socialismo. Era
um romance-folhetim que foi vendido em fascículos e entregue em domicílio.
Dessa forma, ele atingiu os desafortunados e permitiu contornar a censura.
A partir de 1850, os
aborrecimentos começaram e as impressões foram confiscadas. Foram necessários
oito anos para que o romance fosse terminado, exatamente em 1857. Nesse ano, a justiça
apertou a perseguição e sessenta mil exemplares foram apreendidos. Depois,
decidiu-se um processo. Lachâtre foi condenado a um ano de prisão, pena
considerada alta. Todos os exemplares dos romances foram destruídos, provocando
uma perda financeira considerável. Seu
dicionário foi confiscado e condenado à destruição, ficando nos anais da
história como o único caso de um dicionário de uma língua a receber uma
condenação no século XIX.
A justiça não dá trégua e em 6 de abril de 1859 o condenou novamente
como autor do Dicionário Francês
Ilustrado. Esperando apenas prescrever, o livreiro se exilou em Barcelona,
onde KARDEC, A|llan. Obras póstumas.
Brasília. FEB. 1987; viveu de 1858 a 1864. Em Barcelona, Lachâtre foi um
dos personagens do Auto-de-fé de Barcelona, quando decidiu, de forma legal,
trezentos livros, brochuras e revistas espíritas, adquiridas a Allan Kardec,
que foram declarados na alfândega, mas apreendidos pelo arcebispo de Barcelona,
Antoni Palau i Térmens, para logo em seguida todos serem queimados por se
tornarem “contrários a fé católica” e
que poderiam “perverter a moral e a
religião de outras regiões”.
Frente a todas essas narrativas é perfeitamente compreensível a
precaução que o Espírito da Verdade imprime a Kardec, pois sem sombra de dúvida,
a aproximação dos dois poderia trazer prejuízos consideráveis ao lançamento de O Livro dos Espíritos.
Portanto, fica descartada a frágil opinião do confrade Clovis Nunes,
acerca da possibilidade do Sr. M..., ser Karl Marx...
...de hoje em diante Sr. M... foi, indiscutivelmente,
Maurice Lachâtre.
Bibliografia
DIVERSOS. Em torno de Rivail. Bragança Paulista-SP: Lachâtre, 2004.
INCONTRI, Dora. (organizadora). Educação, espiritualidade e transformação
social. São Paulo: Editora
Comenius, 2014.
KARDEC, A|llan. Obras póstumas. Brasília.
FEB. 1987;
MARX. Karl. Miséria da filosofia.. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
Caro amigo Jorge, li atentamente essa peça histórica que você produz e, sem qualificação crítica para julgamento, confesso que os argumentos a mim parecem bastante razoáveis e justamente pela coleção de evidências que indicam enorme vinculação do Codificador com aquele que viria ser um dos editores da obra espírita. Grande abraço. Roberrto Caldas
ResponderExcluirCaro amigo,
ResponderExcluirPor isso mesmo, sua opinião é importante, pois não existiu o prévio julgamento do assunto. Grato!
Jorge Luiz
Li e reli. Cuidadoso resgate histórico que desconstrói uma afirmativa e sela o entendimento do verdadeiro personagem sinalizado por Kardec. Essa tendência de vários confrades em afirmar a falha da missão de Karl Marx me soa um posicionamento conservador as ideias revolucionárias. Parabéns! Continue a nos presentear.com suas pesquisas e produções! Luciana Pinheiro
ResponderExcluirDois pontos importantes:
ResponderExcluir1) O resgate histórico é importante para colocar não somente os pingos nos is, mas também demonstrar que estudiosos conhecidos podem cometer erros - é o grande problema de colocar o "achismo/' no lugar da pesquisa acurada - no geral, dentro de nosso movimento, o achismo ganha mais repercussão do que a pesquisa embasada, bem como obras psicografadas com ideias descomprometidas e desvinculadas da realidade histórica têm mais força do que a pesquisa;
2) Teria sido um feito e tanto a reunião entre esses dois grandes pensadores. Há muitos sábios com ideias tão próximas, apesar de terem tomados caminhos tão distintos, que valeria a pensa imaginar um encontro, que podemos promover estudando ambas as obras.