Continuamos aqui as reflexões sobre a não
violência, iniciadas na semana passada. Retomando a partir de Jesus, já que é a
referência principal dos cristãos, que supostamente são a maioria em nossa
sociedade, em suas diversas denominações. Em nome de Jesus, tanta violência já
foi cometida e continua sendo propagada e aplicada, que parece importante
decifrar sua mensagem.
Os cristãos, em sua maioria, não aceitaram a
não violência de seu mestre. Desde os primeiros séculos, promoveram
perseguições entre eles mesmos, sem mencionar a virulência contra os pagãos e
os judeus, assim que conseguiram se estabelecer como religião aceita no
decadente Império Romano. Divergências teológicas provocavam brigas armadas;
catequese à força implicava e implica ainda em destruição de outras formas de
crença (dos pagãos dos anos 400 às crenças indígenas e afro-brasileiras da
atualidade); conluio indecente entre poder religioso e poder do Estado – desde
Constantino ao nosso (des)governo atual. Muito ilustrativo é o filme Ágora (ou
Alexandria), em que se narra a história de Hipátia, uma filósofa e matemática,
que foi trucidada por cristãos, no ano de 415. Apesar de algumas imprecisões
históricas, o filme reflete bem o clima da época.
Ora, os cristãos nunca levaram a sério a
mensagem de amor, perdão, fraternidade e paz propagada pelo Mestre que dizem
seguir.
Por isso, o modo não violento de agir nunca
foi experimentado no mundo, e isso inclui Ocidente e Oriente (e me parece que
no caso no Oriente, Buda também tinha uma postura de não violência, pela sua
ênfase na compaixão). Todos os governos, todas as empreitadas, todas as
resoluções de conflito e toda a estrutura social (seja escravagista, feudal ou
capitalista), sempre se deram na base na violência, do morticínio, da opressão,
diga-se de passagem, no enquadramento do patriarcado. Esse mundo violento e
opressor que conhecemos é um mundo governado pelos homens, que já se
constituíram desde a pré-história, como guerreiros. Raras sociedades tiveram
mulheres guerreiras.
É factível pensarmos em mudar isso? Será
ingenuidade querer transformar a espécie humana, gerada na luta pela
sobrevivência, segundo a visão de Darwin, e mantida historicamente na luta de
classes, segundo a perspectiva de Marx, carregando sempre no inconsciente, um
impulso cego de destruição, segundo a visão de Freud?
Desejamos que sim, esperamos que sim,
acreditamos que sim. É possível, necessário, urgente… mudarmos o padrão de
comportamento violento, que começa nas microestruturas familiares e escolares e
se estende aos impérios e às nações…
Se alguns seres humanos se propuseram e
conseguiram agir nesse sentido, todos podemos, se acreditarmos nesse caminho e
trabalharmos por ele. Claro que o pressuposto de uma natureza humana que contém
uma centelha divina, um potencial crístico ou búdico, ajuda a nos enxergar esse
possível caminho.
Então, é preciso combater a injustiça, a
exploração, a fome, as estruturas de poder, mas superando igualmente em cada um
de nós a fonte de agressividade, ganância e sadismo. Se combatemos todas as
estruturas injustas com mais violência e ódio, alimentamos em nós os mesmos
impulsos que as geraram em primeiro lugar. Não existe a dimensão social sem a
dimensão psíquica e vice-versa. Um grande autor como Erich Fromm, que fez um
diálogo construtivo entre marxismo e psicanálise, demonstra bem esse ponto, ao
analisar as origens do nazismo em seu brilhante livro O Medo à Liberdade.
Para combater um fascista não posso agir como
ele, senão me torno igual a ele. Não podemos ser moles, permissivos,
indiferentes, coniventes, medrosos. Temos que manter a coragem, a dignidade, a
firmeza, a resistência, a desobediência, mas não podemos nos deixar tomar pelo
ódio, pelo desejo de extermínio, pois estaremos coisificando o outro, tanto
quanto ele nos está coisificando. Ao invés de nos deixarmos tomar pela sombra
do ódio, temos que acender uma luz interna, que poderá um dia iluminar também o
outro. Para mim, espírita, esse dia pode ser agora ou em próximas vidas.
Pode-se alegar então: devemos entregar o
pescoço para o inimigo? Não. Toda defesa é necessária. Mas na luta armada, não
se pode também morrer? Então, melhor a morte do martírio, que fecunda um mundo
novo, do que a morte levando outros junto, que perpetua a guerra e a violência,
num ciclo sem fim.
Para o pensamento masculino, patriarcal,
aquele que se constitui na violência de ser macho predador, essas ideias são ingênuas,
fracas, indignas. Passados dois mil anos da mensagem de Jesus e mais de dois
mil anos da mensagem de Buda, ainda ocidentais e orientais consideram que
perdoar é desonra, é humilhação e falta de dignidade.
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