Anunciamos na semana passada que iríamos
refletir sobre a questão: Jesus era mesmo a favor da não violência?
Tolstoi e Gandhi, ao criarem o movimento da
resistência passiva, se inspiraram diretamente no Sermão da Montanha. Será que
estavam equivocados, ao interpretar Jesus como um pacifista?
No mundo antigo, entre judeus, romanos e
gregos, que se saiba, nunca houve uma proposição ética de se perdoar e amar os
inimigos, de se dar a outra face, de se oferecer em martírio, ao invés de se
pegar em armas. Todo o mundo antigo se pautava, no Oriente e no Ocidente
(talvez com a exceção de alguns discípulos de Buda) na ideia de que a honra
deveria ser lavada em sangue. De que perdoar o inimigo era fraqueza e covardia.
Aliás, o perdão jamais foi uma virtude sequer mencionada pelos antigos. Platão,
em sua República ideal, coloca a classe dos guerreiros como guardiões da cidade.
As virtudes, proclamadas por Platão e seu discípulo Aristóteles, eram a
justiça, a temperança, a coragem e a prudência. Nada de fraternidade, amor,
perdão… tudo isso é cristão – aliás, contra essas virtudes cristãs, Nietzsche
vai bater seu martelo, considerando-as de maneira muito grega, como próprias de
escravos.
Mas foi justamente essa uma das principais
revoluções éticas de Jesus: colocar o amor como antídoto do ódio, o perdão como
meio de resolução de conflito.
Outra revolução foi a ideia de igualdade.
Hoje, quando defendemos uma Declaração Universal dos Direitos humanos, baseados
na ideia de que todos e todas têm iguais direitos, apesar da laicidade desse
documento, estamos assentados numa tradição cristã. Embora as Igrejas cristãs
nunca tenham cumprido essa ideia de Jesus, incorporando em suas instituições
tanto a violência, quanto o patriarcado, quanto a profunda divisão de classes…
Jesus foi aquele que inaugurou a ideia de igualdade, que partilhou com as
mulheres o pão e o ensino, enquanto os gregos, tão civilizados e criadores de
tantas conquistas culturais, trancavam suas esposas e filhas nos gineceus e
mantinham escravos. Os romanos, com seu Direito que até hoje deixou marcas no
Ocidente, tinham em sua lei o pátrio poder de, inclusive, matarem suas mulheres
e seus filhos. Jesus foi aquele que se dirigiu a judeus e a romanos, para
escândalo dos judeus. Jesus foi aquele que falou com as crianças, para
escândalo dos próprios discípulos. Jesus foi aquele que inibiu que se
apedrejasse a pecadora.
Espanta-me que os estudiosos contemporâneos
das escrituras, embora tenham muito progredido em apontar como se constituíram
os Evangelhos, como se formaram os dogmas, como se amalgamaram as mensagens dos
primeiros apóstolos com as tradições pagãs e com as estruturas políticas do
Império Romano, não reconhecem como deveriam a originalidade ética de Jesus.
Essa foi uma contribuição importante de Kardec com o Evangelho Segundo o
Espiritismo, onde ele focou apenas os valores éticos propostos por Jesus. Hoje,
quanto mais se despe Jesus dos seus aparatos mitológicos e se quer apreender o
Jesus histórico, mais se pretende descrevê-lo apenas como um judeu milenarista
de sua época, em luta contra o Império Romano ou esperando o advento próximo do
Reino. Exemplo dessa interpretação milenarista está nas obras, em vários
aspectos muito pertinentes, de Bart Ehrman.
Por que então teria sobrevivido Jesus a seu
tempo, à sua região? Se fosse apenas um profeta zelote, interessado em derrubar
o Império romano, ou um milenarista à moda dos essênios, à espera imediata do
reino? De onde teria surgido essa ética tão insólita no mundo antigo: uma ética
de amor e não-violência, de perdão e misericórdia?
Historicamente não se encaixa um homem judeu
naquele contexto, ensinando algo que nunca foi dito… Para os cristãos
tradicionais, tratava-se de uma pessoa divina; numa explicação hindu, poderia
tratar-se de um avatar; para os espíritas, Jesus é um espírito elevado, que já
atingiu um nível de perfeição acima dos seres humanos. Ainda um ateu pacifista
pode muito bem aceitar a ideia de que se tratava de uma pessoa fora da curva,
fazendo história, de maneira singular e inédita. O argumento sinuoso de que o
Jesus histórico, revolucionário armado, revoltoso contra Roma, tenha sido
domesticado historicamente, parece sem referências concretas, mas apenas
especulações de quem quer achar o apoio do Cristo para a violência.
Pode-se perguntar: ele não expulsou os
vendilhões do templo? Sim, rebelou-se contra a exploração da fé. Foi duro
contra os fariseus e isso nos mostra como a não violência não é assentimento da
violência, da exploração e da opressão.
Mas a mensagem de Jesus foi uma mensagem
universalista, dirigida ao ser humano e não apenas a uma parcela, classe ou
gênero… Ele pretendia a salvação, a redenção ou, interpretado de forma
diferente, a iluminação e evolução de todos e todas. Do pobre e do rico, do
homem e da mulher, do romano e do judeu, do senhor e do escravo.
Assim entendeu Gandhi, que ao lutar pela
liberdade da Índia, não exercia o ódio contra os ingleses (e ele tinha motivos
de sobra para um ódio fervoroso), mas queria tocá-los e lhes dar uma lição de
justiça e fraternidade. Ao mesmo tempo, entendia que seus compatriotas, embora
vítimas da dominação inglesa, também exerciam eles próprios a opressão das
castas, sobretudo em relação aos intocáveis, aqueles que estavam fora de todas
as castas e assumiam os trabalhos sujos da sociedade. O processo de Gandhi foi
o de se unir aos intocáveis, fazendo os serviços considerados impuros, que eles
eram obrigados a assumir. Não se considerava com moral para lutar contra o
colonialismo inglês, se ele próprio participasse da opressão interna de seu
país. Nesse duplo movimento, Gandhi mostrava que a violência está entre
opressores e oprimidos e que precisamos despertar uma consciência de irmandade
em todos os membros da sociedade humana.
A prática da não violência está comprometida
a acabar com qualquer relação de opressão e violência e não usar novas
modalidades de coerção, para supostamente acabar com a violência estrutural da
sociedade.
Por isso, Jesus dizia que o reino de Deus
está dentro de nós – dos judeus e dos pagãos; dos homens e das mulheres; dos
ricos e dos pobres; dos ladrões e das prostitutas; dos poderosos e das
crianças… é preciso acordar esse reino nos corações e não eliminar os que andam
sonolentos, inconscientes, gritando e ferindo, enlouquecidos. Isso não
significa que não devamos nos opor com todo o engajamento possível às
violências, às injustiças, ao extermínio mesmo de seres humanos, pertencentes a
esse ou aquele grupo. Derrubemos as mesas do templo, com o mesmo chicote de
Jesus. Mas ele não matou os mercadores.
Entretanto, esse caminho da não violência
exige mudanças profundas na consciência e na ação de seus praticantes. É o que
veremos na próxima carta.
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