A jornalista âncora de um programa televisivo
abriu o debate com a frase-título: “Esse
vírus é filosofia pura.” Ela foi de uma felicidade sem igual. Quantas
interrogações não têm surgido diante da pandemia? Nenhum segmento das
sociedades ficou sem ser afetado. O imaginário humano está desconectado da vida
que vinha sendo palmilhada. Voltar ao normal será impossível. É necessária uma
nova ordem mundial. Como surgirá? Quem demandará? Como se processará? As
iniciativas de solidariedade nos dão um indício do que é na essência o ser
humano. A solidariedade não é nada mais que a filosofia da alma.
Não
há uma resposta única e definitiva sobre o significado de filosofia. O que mais
se apresenta universal é “Amor à Sabedoria.” Os filósofos contemporâneos Gilles
Deleuze e Félix Guattari, que escreveram um livro intitulado O que é a Filosofia?, afirmaram, como
resposta, que “a filosofia, mais
rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos.” Essa definição
se ajusta ao contexto atual, diante da necessidade premente de se ressignificar
praticamente toda a civilização.
Charles
Handy, irlandês, filósofo da gestão, estudando os destinos da civilização além
do capitalismo, assim se expressa:
“O capitalismo, a eficiência e os
mercados têm os seus defeitos, mas também têm suas utilidades. Não são nem a
resposta completa para nossos dilemas e tampouco a causa deles. Proporcionam
alguns dos contextos de nossa vida, mas não são o propósito. Para tanto, precisamos
de uma filosofia, não de um sistema econômico.”
Handy
não afirmou de uma religião. Por quê? A religião é por natureza escatológica.
Já tem as respostas prontas sempre em cima dos seus dogmas. Vê-se que até a
própria filosofia das religiões nascem a partir dos dogmas religiosos,
exatamente para afirmá-la. Busquem-se os “filósofos cristãos” – católicos ou
protestantes.
A
filosofia espírita, que é a adequada para esse estágio da Humanidade, tal qual
Allan Kardec previu, nasce da ciência espírita, que tem como paradigma maior o
Espírito. E a religião espírita é o produto da filosofia espírita e não o
contrário.
É
imperativo que se tome conhecimento das características dominantes à época de
Kardec, no plano social, político, econômico e de forma especial as
perspectivas filosóficas, considerando-se que se estabeleceu um conhecimento
laico, despido de toda e qualquer influência religiosa. Ora, enquanto a vida
social no mundo feudal foi baseada no obscurecimento da razão pelos valores
religiosos, na sociedade de mercantilização avançada, todas as relações sociais
ficam reduzidas à troca mercantil, ao assalariamento e às formas contratuais. A
França, embora não tenha sido o berço dessas transformações, foi de fundamental
importância na reestruturação da vida social à época. Vem surgir desse contexto
a unificação dos Estados Nacionais, superando os Estados Feudais, a instauração
da democracia e do Estado de Direito, tudo isso que conhecemos e achamos como
sendo a forma natural de vida.
Vai
surgir, consequentemente, a forma moderna de desigualdade social, da
concentração de renda e da formação de classes, como hoje conhecemos é que
caracteriza a globalização burguesa.
Fundamentalmente, foi nesse
caldeirão de transformações que Kardec dialogou para a construção do pensamento
espírita.
Observa-se todo esse alcance
social em O Livro dos Espíritos,
quando condena a acumulação individual da propriedade, na recomendação da
acumulação coletiva e justa distribuição dos bens (questão 881: “o direito de
ajuntar... o homem deve fazê-lo em comum”; questão 884: “só há uma propriedade
legítima, a que foi adquirida sem prejuízo para os outros”; questão 930: “numa
sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome”); pregando
a reforma das instituições e das leis (questão 914: “é necessário reformar as
instituições humanas, que entretêm e exercitam o egoísmo”) e convocando os
homens à prática da justiça social, Kardec e os Espíritos que com ele dialogam
estão longe de uma ideologia liberal burguesa, onde a caridade apenas seja um paliativo
da inevitável exclusão de muitos.
Vê-se,
não muito diferente, quanto às questões da filosofia moderna, que vai do século
XVI ao XVIII, que abrirá perspectivas para o século XIX, enriquecendo-se como
novas instâncias, como a política, a pedagógica e a científica. Nesse período
se percebe a persistência dos problemas filosóficos tradicionais; o da natureza
ou cosmologia, o de Deus ou teodiceia; o do conhecimento, ou gnosiologia; o da
alma ou psicologia; o da liberdade e da lei ou moral; e o do ser ou metafísica.
Não
passam despercebidos esses temas em O
Livro dos Espíritos, identifica-se um exame geral da Cosmogonia Espírita,
nos seus três primeiros capítulos. Não diferente, vê-se a Cosmologia Espírita,
nos capítulos seguintes. No capítulo II, do Livro Segundo, de O Livro dos Espíritos, as perspectivas
da Sociologia Espírita em toda a sua amplitude. Já a Cosmossociologia Espírita
se encontra nos capítulos IV, V e VI, completando-se nos capítulos X e XI do
mesmo livro. O socialismo e o anarquismo estavam na ordem do dia e Maurice
Lachâtre, amigo de Kardec, abraçou essas ideias.
No
século XIX, é nítida a autonomia da pesquisa filosófica em relação à teologia;
do pluralismo das linhas filosóficas, que passaram a ter liberdade para
sustentar qualquer sistema mediante a razão. Com essas e outras transformações,
o pensamento grego e medieval cede lugar à epistemologia e à metodologia. Com o
prestígio das ciências naturais e suas descobertas, os filósofos julgaram poder
aplicar os métodos e critérios destas ciências e obter resultados semelhantes,
imprimindo com isso a marca da filosofia do século XIX. É imperativo assinalar
onde Kardec se apoia para elaborar as pesquisas espíritas e a sistematização da
estrutura doutrinária do Espiritismo.
Alysson
Mascaro, professor e escritor de livros da Filosofia do Direito, na obra Cristianismo Libertador, assim se
expressa:
“A transformação humana, numa
perspectiva cristã, é revolucionária como o Cristo, revolucionária no sentido
de uma práxis do amor verdadeiro, o que se perfaz na prática, e com as teorias
e as filosofias tiradas não da metafísica, não da revelação do sagrado, mas
opondo-se ao sistema opressivo e tendo em vista a exploração, as carências e as
injustiças de nosso tempo, estando ao lado do explorado.”
Onde
estão os espíritas revolucionários? Por que “espíritas conservadores”?
“Espíritas progressistas”?
Para
quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir, fica patente que em um cenário rico de
conhecimentos, Allan Kardec dificilmente optaria por condicionar o Espiritismo
a uma simples religião. O Espiritismo está longe de ser uma proposta
contemplativa, restrita à distribuição de cestas básicas, sopas, passes,
copinhos de água fluidificada e um mediunismo piegas.
Fala-se
muito em revisão ou atualização do Espiritismo. Na realidade, o que se deve ter
em mente nesse momento atual é a revisão e atualização do modelo de espírita e,
consequentemente, do movimento espírita; das instituições espíritas como um
todo. Uma interface do atual momento com o momento do surgimento das ideias
espíritas no Planeta é indiscutível.
É necessário um
realinhamento histórico e doutrinário, com Kardec
A
transformação moral da humanidade, tão badalada entre os espíritas, a ser
realizada não cobre uma forma de amor passivo, mas sim ativo.
Encerre-se,
como Mascaro:
“A transformação humana verdadeiramente
cristã, somente possível através do prisma da ciência espírita, é uma
humanidade nova e que valha pelo amor que a constitui, não a sociedade da
migalha dada ou do dinheiro que se tenha. Se o amor do Cristo foi infinito,
toda luta que não seja radical e toda a transformação que queira ser parcial
não são cristãs.”
Referências:
DIVERSOS. Em torno de Rivail. São Paulo: Lachâtre, 2004.
DELLEUZE, Giles & GATTARI, Felix. O que é filosofia. São Paulo. Martins
Fontes, 1992.
HANDY, Charles. Além do capitalismo. São
Paulo: MAKRON, 1999.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.
MASCARO, Alysson. Cristianismo libertador. São Paulo: Comenius, 2002.
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