O cenário pandêmico que a Humanidade
atravessa oferece perspectivas múltiplas e necessárias para se reavaliar,
sistematicamente, todos os conceitos que vigoraram após as revoluções industrial,
francesa, movimento iluminista, e que balizaram o modelo da sociedade burguesa capitalista
ainda vigente.
Indiscutivelmente,
a morte ronda nossos entornos de forma voraz. Entes queridos, amigos,
subitamente desencarnam e não se sabe a hora de cada um de nós.
As
desencarnações coletivas se somam às consequências econômicas e sociais e a
pandemia vira um pandemônio de dor e sofrimento, como consequências emocionais
e psicológicas imprevisíveis. É válida nesses aspectos a advertência dada aos
espíritas, pelo Espírito Doutor Demeure, inserida na Revista Espírita,
outubro de 1867, por ocasião de uma epidemia de cólera; advertência que serve
para esses dias:
“Mas não vos inquieteis; para vós
espíritas, que sabeis que morrer é renascer, se fordes atingidos e partirdes,
não ireis à felicidade? Se ao contrário, fordes poupados, agradecei-o a Deus,
que assim vos permitirá aumentar a soma dos vossos sofrimentos e pagar mais
pela prova.
De um lado como de outro, quer a
morte vos fira, quer vos poupe, só tendes a ganhar, ou, então, não vos digais
espíritas.”
A
certeza espírita da realidade futura, de uma perspectiva eterna, para alguns é
um refúgio ou mesmo um truque para driblar a realidade.
As
iniciativas de solidariedade são características que se inoculam na sociedade nesses
tempos de dores coletivas. Delas, surgem as mais variadas reflexões sobre o
sentido real da existência, e nesse caso, se espera um ressignificado nos
sistemas estruturantes da sociedade como um todo.
Indiscutivelmente,
sabe-se que o vazio existencial é um fenômeno difundido e que se arrasta até
nossos dias, basta ver como exemplo os refúgios nas drogas, neuroses,
comportamentos exóticos e a pandemia de suicídios que assolam o Planeta.
Viktor
Frankl (1905-1997), neuropsiquiatra austríaco, sobrevivente de quatro campos de
concentração nazistas, fundador da terceira escola vienense de psicoterapia, Logoterapia (1) e Análise Existencial, dentro de uma
perspectiva evolucionista, considera esse vazio existencial a uma dupla
perda sofrida pelo ser humano desde que se tornou um ser verdadeiramente
humano. Em um primeiro momento, continua Frankl, essas perdas foram decorrentes
dos instintos animais básicos que regulam o comportamento do animal e asseguram
sua existência.
Viktor
Frankl foi o prisioneiro nº 119.104, em quatro campos de concentração nazistas,
onde através de observações consolida as suas ideias preexistentes.
Frankl
considera algo de fundamental importância para se compreender os dias atuais. Ele
atribui a causa maior do vazio existencial à perda das tradições. Ora,
fragilizado pela perda de alguns dos instintos animais, na atualidade, o
indivíduo vê-se as tradições desaparecendo pelo progresso inexorável, inseguro,
pois não há instinto que lhe diz o que deve fazer e não há tradição que lhe
diga o que ele deveria fazer; às vezes, ele não sabe sequer o que deseja fazer.
Aqui reside o “xis”
do
problema. Sem uma substituição plausível só lhe restam dois caminhos: a)
fazer o que os outros fazem (conformismo), ou ele faz o que outras pessoas
querem que ele faça (totalitarismo).
O que é a tradição? O
patriarcado que estruturou tradições em preconceitos de toda ordem, em um
machismo sem precedentes. A ignorância que favorece a corrupção sistêmica. Um
sistema político que não representa e nem atende aos desejos da sociedade.
Talvez em Frankl,
encontra-se mais uma teoria que justifica o espírita conservador, dentro do
modelo atual, que é racionalmente irreconciliável com o propósito evolutivo da
Doutrina Espírita. Afigura-se, na realidade, como um mecanismo de fuga.
Na questão nº 132, de O Livro dos Espíritos, os
Reveladores Celestes são enfáticos quando afirmam que a finalidade da
encarnação é a perfeição. Mas, para se chegar a essa perfeição, os Espíritos
devem sofrer todas as vicissitudes da existência corpórea. A alma que não
atingiu ainda a perfeição – questão nº 166 – deverá se submeter a uma nova
existência.
O homem jamais pode
retrogradar – questão nº 778 – para a sua condição primitiva, pois seria negar
o seu progresso. Isso é factível para qualquer espírita.
Contudo, a fase do desconhecimento
de si mesmo, característica neurotizante resultado daquele que dá importância
demasiada a opinião dos outros, aparência, conquista das coisas externas,
convívio social e disputas insignificantes, faz com que o indivíduo que ainda não
consolidou a crença da sua realidade profunda e das suas potencialidades
íntimas, rompa com os valores tradicionais, já que a transição evolutiva é
sempre desafiadora, prende-se às tradições de outrora como se essas servissem
para validar o seu progresso infinito. O indivíduo mimetiza o futuro com os
valores do passado, o que é irrealizável. É bom lembrar Jesus quando advertiu
(Mt, 6:25): “Não
andeis cuidadosos da vossa vida pelo que haveis de comer ou beber, nem do vosso
corpo pelo que haveis de vestir; não é a vida mais que o alimento, e o corpo
mais que o vestido?”
Frankl faz um caminho inverso do sempre recorrente em tempos de
desespero; ao invés de se indagar o que se espera da vida, mas, tão somente, o
que a vida espera de cada um de nós. Seguindo-o, dir-se-á: o que a vida espera da sociedade
como um todo? Na realidade, uma revolução copernicana em
tudo que essa transformação representa para a Humanidade, partindo da premissa
de Karl Marx, quando afirmou que até o momento fomos impelidos a compreender o
mundo, quando o importante é transformá-lo, para o que ele sonhou com uma
filosofia da práxis.
A pandemia expôs que a sociedade brasileira está doente. Não,
da pandemia, mas a vida social, pois essa depende de uma sociedade funcional de
fato. Para que a sociedade funcione, há necessidade de que os indivíduos
desfrutem de posição e função sociais. Sem isso, a sociedade é irracional,
imensurável e amorfa. Observa-se a quantidade de indivíduos entregues à própria
sorte, diante de um sistema de governança que o poder só se legitimiza para a
burguesia. Na realidade, a sociedade brasileira é constituída de párias,
indivíduos sem raízes, vivendo isolados socialmente.
A vida, para que ela se realize como sociedade, exige
necessariamente, para que assim se realize, qual é o Ser real; qual a sua
natureza e a sua destinação. Sem essa variável, até os níveis de poder se
tornam ilegítimos, consequentemente, a ilegitimidade nos dirige.
Referências:
DRUCKER,
Peter. A sociedade. São Paulo: NOBEL,
2001.
FRANCO,
Divaldo. Autodescobrimento. Salvador:
LEAL, 1995.
FRANKL,
Viktor. Em busca do sentido. Rio de
Janeiro: VOZES, 2008.
KARDEC,
Allan. Revista espírita – 1867.
Brasilia: FEB, 2004.
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