Há extremos nas atitudes que adotamos na vida em sociedade, que os espíritas e cristãos em geral, deveriam evitar. Aliás, como bem diziam tanto Buda como Aristóteles, a virtude está no caminho do meio.
É fato que o mundo em que vivemos ainda é um mundo de grandes sofrimentos e se há sofrimentos é porque há aqueles que fazem sofrer e porque nós mesmos estamos enredados em complexos de dor. As guerras, o domínio dos que exploram, as injustiças em todos os níveis, a violência contra crianças e mulheres, os abusos, a fome diante de uma civilização de fartura, em que países inteiros apresentam índices de obesidade e toneladas de comida são inutilizadas, para não “desequilibrar o mercado”… poderia preencher páginas e páginas com as mazelas do mundo. Chocamo-nos com elas todos os dias.
E elas nos cercam na intimidade também… e o pior, mesmo dentro de nós.
Então, há duas tendências comuns que se observam na apreensão desse cenário: há aqueles que se alienam e entram num processo de negação da realidade e há aqueles que se amargam.
Os primeiros são os que fogem, seja para as drogas legais ou ilegais, seja para o consumo desenfreado, seja para a autoajuda oba-oba, que prega o pensamento positivo mágico e inócuo. Anestesiam-se e parecem andar em estado sonambúlico. Não entendem e não querem entender como se estruturam as injustiças no mundo. Não querem saber como o planeta é dominado pelos bancos, pelo complexo bélico-industrial, como somos joguetes da mídia, como a educação é uma forma de sujeição das massas. Apenas exibem o sorriso pseudofeliz do Facebook e sua militância para transformar o mundo se resume a algumas carinhas tristes diante das crianças refugiadas da Síria ou algumas mornas palavras de indignação contra a corrupção política.
Entre esses, há muitos espíritas. São os que se consolam achando que as crianças que morrem de fome na África foram nazistas… Quantos nazistas são necessários para povoar um continente, encher uma boate que pegou fogo e ainda estarem todos reencarnados nas Casas André Luiz? A lei do carma, entendida de maneira simplista e punitiva, serve como uma luva para os alienados. Ela justifica toda miséria, ela os isenta de lutar para mudar o mundo… afinal quem está sofrendo é porque merece.
Essa é a versão espírita desse primeiro grupo e se esses não fogem para as drogas, vivem se anestesiando com discursos místicos, de oradores melosos, tão vazios quanto eles próprios.
Os segundos vivem revoltados ou desesperados, incrédulos do progresso, sombrios quanto ao futuro, escarafunchando a cada dia as aberrações do mundo. Gritam e se debatem, reclamam e disseminam as notícias, muitas vezes verdadeiras, mas que envenenam o nosso dia a dia de desesperança.
Ora, a grande questão é: como manter um lúcido espírito crítico, uma visão precisa da realidade, sem cairmos na depressão, na revolta e no ceticismo em relação ao futuro e ao ser humano?
Como guardar a fé e o amor à humanidade em meio a tanta barbárie, sem negar que a barbárie existe e está diante de nossos olhos?
Esse é o desafio que nos está posto nesse século agitado, cheio de horizontes sombrios.
Eu me lembro nesse momento de um belo livrinho que recomendo aqui: Diário do Gueto de Janusz Korzcak. O médico e educador judeu-polonês estava confinado no gueto de Varsóvia, com suas 200 crianças, sob a barbárie nazista, e dali seguiria para um campo de concentração, onde morreria com elas, numa câmera de gás. E ele escreve um diário. Um diário triste, mas não amargo; perplexo, mas nunca com ódio. Delicado e lúcido, enquanto olha um soldado alemão e se questiona quem seria aquele ser humano… Eis alguém que vive numa situação limite e não se deixa contagiar pelas sombras. Mantém sua própria luz acesa, embora bruxuleante de fome e tristeza.
E nós espíritas?
A visão espírita, se bem introjetada, é aquela que nos descerra a eternidade, que nos faz compreender o lado sombrio do ser humano, como um desequilíbrio momentâneo; a dor, como um processo de amadurecimento e aprendizagem; mas sobretudo é aquela que nos permite enxergar o bem em cada pessoa (mesmo nas piores) e termos a certeza de que esse bem sempre vence, dentro, fora e em torno de nós.
É uma visão que dá força, mas não nos deve fazer insensíveis e indiferentes ao sofrimento humano.
É uma visão que nos projeta além do tempo e do espaço, mas não deve nos arrancar do momento presente, que é bem aquele em que devemos atuar.
É uma visão que nos educa para o caminho da esperança ativa, dos que querem a justiça, sem vingança e a paz, sem passividade e covardia.
Que bom seria se pudéssemos contar com muitos espíritas assim: que se comprometessem com a mudança do mundo, lúcidos em relação às suas estruturas injustas e sombrias, mas que esse comprometimento fosse cheio de misericórdia e piedade, inclusive para com aqueles que provocam a dor e a miséria, a violência e o abuso.
Não se trata de um discurso meloso sobre “nossos irmãozinhos infelizes”… Trata-se de um amor compassivo, mas que se empenha em tocar as almas endurecidas, esclarecer energicamente os vendilhões do templo, espalhar a verdade com clareza e responsabilidade…
Olhando espiritamente esse episódio de Janusz Korzcak, narro algo que se deu em nossa reunião mediúnica da ABPE, anos trás, quando estávamos trabalhando na publicação de um livro sobre ele e nos conectamos profundamente com esse espírito e com os acontecimentos que viveu. Inesperadamente e de forma muito emocionante, ocorreram inúmeros trabalhos mediúnicos em que esse mesmo educador, morto pelos nazistas, veio ajudar no resgate deles, que ainda estavam presos ao momento trágico da perseguição. Ele lhes aparecia e a simples visão da vítima transformada num ser luminoso e acolhedor, fazia soluçar os mais desesperados. Eis um sentido sublime da dor: aquele que foi injustiçado, perseguido e morto tem o poder único de tocar seus verdugos com um gesto de amor e perdão.
Por isso, não nos rendamos ao ódio, quando verificamos as barbaridades desse planeta e quando sabemos quem as praticou ou ainda pratica. Primeiro, porque todos nós já passamos por esses desvarios e, quem sabe, em certas circunstâncias, até poderíamos repetir algum desses atos. E segundo, porque, como dizia Jesus, só o amor cobre a multidão de pecados e só ele pode salvar o mundo.
Portanto, denúncia sim, mas com misericórdia e crítica sim, mas com compreensão…
Perfeito e necessário: precisamos manter o pé no chçao e construir ferramentas para mudar essa situação no mundo, que é péssima, mas com condições de mudar.
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