domingo, 28 de fevereiro de 2021

O ESPIRITISMO QUE QUEREMOS...

 


Em diversas polêmicas de que recentemente participamos nesse blog da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (ABPE), provocando reações de adesão apaixonada ou de críticas agressivas, fica claro que há profundas rachaduras no movimento espírita brasileiro, apesar de muitos quererem maquiar essa realidade, invocando palavras de paz e fraternidade. Mas meras palavras e boa intenções não resolvem as divergências, que são sérias e algumas bastante pertinentes. Precisamos nos indagar: o que nos une e o que nos divide? Há cura para essas cisões? E, além disso, há mesmo necessidade e possibilidade de haver uma unificação homogênea de todos os que se dizem espíritas?

Uma unificação que não discute diferenças, que não permite crítica e que não se abre ao diálogo, é antes uma camisa de força autoritária, de que os espíritos críticos e pensantes certamente se afastarão.

Por isso, estamos sofrendo perdas significativas de pessoas inteligentes e ativas, de jovens com grande produtividade, e todas as vezes que publicamos alguma nota crítica, há muitos comentários do gênero: “por isso deixei o movimento espírita” ou, pior, “por isso deixei o espiritismo”.

Escutamos muita gente angustiada, expulsa ou auto-exilada de centros espíritas, perdidas em relação a conceitos básicos e à procura de referências. À porta da ABPE, batem os insatisfeitos, os questionadores, os que se sentem desconfortáveis com muitos aspectos do movimento.

Esse artigo, entretanto, não pretende analisar as queixas, pois em diversas postagens, temos feito esses apontamentos, que encontram eco em muita gente e provocam a ira dos que não admitem a crítica.

Queremos aqui fazer o reverso: falar do que a maioria das pessoas procura e o que queremos recuperar do espiritismo, que consideramos estar nas obras de Kardec. Essas também precisam ser lidas no seu contexto, mas para repensar alguns de seus aspectos, precisamos primeiro voltar a Kardec, principalmente a seu método e a seus critérios de racionalidade.

As pessoas querem e precisam ser bem acolhidas nos centros espíritas e bem acolhidas significa serem ouvidas, serem olhadas, poderem participar e terem uma identidade e não se sentirem “assistidas”, “frequentadoras”, “tuteladas” – ou seja, pessoas adultas não podem ser tratadas de forma paternalista. Aliás, segundo a Pedagogia Espírita, nem as crianças devem ser tratadas assim. Também elas precisam ser escutadas, escolher os temas que querem estudar, propor atividades e serem vistas como seres pensantes. Os jovens então mais ainda! Para isso, precisamos de centros pequenos, de grupos familiares, exatamente como propunha Kardec no Livro dos Médiuns.

As estruturas de poder precisam ser abolidas, ou pelo menos relativizadas – dirigentes, instituições, médiuns, não podem ser considerados infalíveis, não podem ser mitificados, e nunca questionados. Para isso, seria desejável que principalmente as pessoas que exercem liderança e têm responsabilidades maiores nas casas e no movimento, fizessem suas terapias, suas análises pessoais, para curarem baixa autoestima, feridas narcísicas, traumas de infância, inseguranças e até problemas psíquicos mais graves. Assim, evitariam o ridículo de se julgarem acima de outros seres humanos, de terem ilusões de grandeza, de se considerarem infalíveis e de aceitarem a devoção bajulatória de pessoas ingênuas e dependentes. A chamada reforma íntima não está dando conta dessas questões, porque produz mais hipocrisia que reais mudanças. Para evoluirmos de fato, precisamos de educação e terapia, com autoconhecimento e autocrítica e não repressão superficial de sentimentos e impulsos.

A mediunidade precisa voltar a ser democratizada. Crianças podem ser introduzidas aos fenômenos mediúnicos, adolescentes podem desenvolver mediunidade, iniciantes não precisam e nem devem fazer longos, engessados e apostilados cursos de desenvolvimento mediúnico, que redundam muitas vezes no ressecamento de todas as potencialidades mediúnicas. A mediunidade precisa ser estudada e praticada ao mesmo tempo, entendida a partir da referência direta do Livro dos Médiuns – até hoje, o melhor manual de exercício mediúnico. Depois das reuniões, desierarquizadas, com fortes vínculos afetivos entre seus participantes, com cruzamento de informações, é bom fazer uma roda de conversas, para comentar o que se sentiu, o que se ficou com dúvida, o que se pode melhorar, com franqueza, com delicadeza e sem melindres.

O espírita – sobretudo se escreve, ensina ou atua de maneira mais ampla no movimento – precisa conhecer o mundo em que vive, estar atualizado, ler fontes diversas que sustentam e refutam seus argumentos, por exemplo, mídia alternativa, artigos científicos referendados, para além da grande mídia e das publicações de ciência popular.

Os espíritas devem investir em educação e não em assistencialismo. E em educação alternativa, aberta, inovadora, como a que foi feita por Eurípedes Barsanulfo, 100 anos atrás, como a que foi proposta por Herculano Pires, como a que trabalhamos na Universidade Livre Pampédia.

Os espíritas precisam saber e aceitar – mesmo que não concordem – que há sim uma leitura à esquerda do espiritismo. O próprio Kardec cita os socialistas utópicos na Revista Espírita. Léon Denis escreveu o livro Socialismo e Espiritismo. Herculano Pires, O Reino e o texto Espiritismo Dialético. Humberto Mariotti, o livro Dialética e Metapsíquica, e houve tantos outros autores na mesma linha, como Cosme Mariño e Manuel Portero. Cleusa Beraldi Colombo (por acaso minha mãe) analisou já em 1991, em seu mestrado, depois transformado no livro Ideias Sociais Espíritas, a evolução de tais ideias no seio do espiritismo. Sinuê Neckel fez isso também em seu mestrado, em relação ao MUE, publicado no livro Movimento Universitário Espírita. Alysson Leandro Mascaro tem pela Editora Comenius, o livro Cristianismo Libertador. Na Espanha do final do século XIX, o espiritismo teve uma leitura anarquista… Ou seja, como em todos os movimentos religiosos, políticos, sociais, filosóficos, há diversas leituras, tendências, debates. Na Igreja Católica, por exemplo, há um Ratzinger, que fez a expulsão de Leonardo Boff e um Papa Francisco, que critica abertamente o capitalismo!

Os espíritas, segundo a recomendação do Espírito da Verdade, devem amar e se instruir. Por isso, um espírita de fato sabe discutir ideias, porque considera a racionalidade algo precioso, e sabe discutir com respeito ao outro.

E afinal, podemos achar e dizer o que nos une a todos? Creio que as ideias da reencarnação, a possibilidade de comunicação mediúnica, a ética do amor ao próximo são pilares sólidos do espiritismo. Mas para que possamos alinhavar mais gente nesse núcleo, precisamos urgentemente usar os critérios racionais de Kardec, o seu espírito de pesquisa, a sua sobriedade e a recusa que ele próprio teve de todo poder e de toda idolatria.

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