segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

ZACARIAS E O ANJO

 


    Conta o evangelista Lucas (capítulo I) que sob o reinado de Herodes, rei da Judeia, há perto de dois mil anos, morava na região serrana, nas proximidades de Jerusalém, o velho Zacarias. Era um dedicado sacerdote, homem piedoso e nobre, pertencente à turma de Abias, uma das vinte e quatro que, segundo as disciplinas do culto judeu, serviam no Templo, em Jerusalém, obedecendo a um sistema de rodízio.

     Zacarias carregava uma tristeza: não tinha filhos. Durante anos implorara a Deus lhe concedesse a graça de acolher um rebento querido em seus braços. Com a velhice desistira da ideia. Difícil antes, impossível agora. Isabel, sua esposa, jamais lhe daria um herdeiro.

     Para os judeus, não ter filhos era uma desgraça. A desonra pesava sobre a mulher que nunca concebera. Ambos suportavam com paciência a penosa situação e cumpriam seus deveres com retidão, sempre submissos ao Senhor.

     Espíritos evoluídos jamais condicionam a confiança em Deus à satisfação dos desejos humanos. Confiam porque guardam plena consciência de que Deus sabe o que faz.

***

     Certa feita, quando chegou a vez de sua turma, Zacarias partiu para a cidade santa. No Templo, tirada a sorte, coube-lhe entrar no santuário onde queimaria incenso em homenagem ao Senhor. A multidão aguardava do lado de fora.

     Para espanto de Zacarias, sozinho no sagrado recinto, surgiu diante dele uma entidade angelical. Tratava-se de Gabriel, o mais famoso anjo das escrituras bíblicas, chamado pela tradição religiosa de alta categoria.

     Além de Zacarias, ele esteve com o profeta Daniel e também com Maria, mãe de Jesus. Provavelmente apareceu em outros episódios bíblicos sem se identificar. Em linguagem espírita diríamos que Gabriel é um Espírito superior, um dos mais importantes prepostos de Jesus.

     Zacarias teve medo, o que revela sua pouca familiaridade com manifestações dessa natureza. Os judeus não estavam acostumados a lidar com os Espíritos. Diga-se de passagem, caro leitor, raras pessoas não se assustariam. São sempre temidas as “assombrações”.

     O anjo buscou tranquilizá-lo:

      Não tenhas medo, Zacarias, porquanto a tua súplica foi ouvida e Isabel, tua mulher, te dará um filho a quem chamarás João. Ficarás feliz e muitos se rejubilarão com seu nascimento, pois será grande aos olhos do Senhor. Não beberá vinho nem bebida inebriante. Será cheio do Espírito Santo, desde o seio materno. Converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, Deus deles. E irá adiante dele, no Espírito e poder de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos e os desobedientes à sabedoria dos justos, a fim de preparar para o Senhor um povo dedicado.

     Gabriel reporta-se à grandeza moral daquele que nasceria filho de Zacarias e Isabel. Um Espírito que, obviamente, já vivera muitas encarnações na Terra, com larga bagagem de experiências e aquisições morais.

     Impossível negar essa evidência. Equivaleria a admitir que Deus beneficia filhos seus com virtudes que a outros nega, uma flagrante e inaceitável injustiça.

     Como o próprio Cristo revelaria mais tarde (Mateus, 17:10-13), aquela criança seria a reencarnação de Elias, o austero e poderoso profeta judeu que vivera há oito séculos.

***

     Naqueles tempos recuados, os homens consagrados a Deus obrigavam-se a uma existência especial. Dentre os compromissos que assumiam, estava a abstenção de álcool. Daí a observação do anjo.

     Sempre que se volta para a religião, o homem é inspirado a preservar a pureza, evitando a taça dos prazeres inebriantes que anestesiam a consciência e afetam os sentidos, simbolizados pelo álcool.

     As forças do Bem pedem instrumentos dóceis, equilibrados e puros para que possam se manifestar em plenitude na Terra, derramando bênçãos de esperança e paz aos Homens.

***

     Zacarias admirou-se.

     – Como pode isso acontecer se eu e minha mulher somos velhos e ela, além do mais, sempre foi estéril?

     O visitante parece não ter apreciado a pergunta.

     – Sou Gabriel, que estou diante de Deus e fui enviado para anunciar esta boa nova. E porque duvidaste, doravante vais ficar mudo. Não poderás falar, até o dia em que teu filho nascer, visto não haveres acreditado em minhas palavras, que a seu turno se cumprirão.

     O povo aguardava Zacarias, estranhando a demora. Quando ele saiu sem poder falar, causou estupefação. Algo inusitado acontecera no santuário. Zacarias explicou, por meio de sinais, e continuou mudo.

     Decorridos os dias de seu ministério sacerdotal, regressou ao lar. Imensa foi sua surpresa quando, tempos depois, confirmando as palavras do anjo, Isabel ficou grávida. Após nove meses dava à luz um menino forte que, conforme a recomendação angélica, recebeu o nome de João. Seria conhecido mais tarde como o Batista.

     Com o nascimento de seu filho, Zacarias recuperou a voz e pôde relatar melhor sua experiência, rendendo graças a Deus pela dádiva recebida.

***

     Gabriel aparenta ser um anjo de pavio curto, que não gosta de ser contestado. Pior: atropelou a justiça ao condenar Zacarias a tão longo mutismo, apenas por manifestar justificável dúvida.

     Inadmissível os Espíritos Superiores nos castigarem por pedirmos esclarecimentos a respeito de suas afirmações. Eles orientam, explicam, ajudam, amparam, mas jamais se exasperam e muito menos impõem sanções, ainda que revelemos ceticismo.

     É fácil entender o que aconteceu. As circunstâncias que envolveram o nascimento de João tinham por objetivo impressionar os judeus.

     Em linguagem atual, diríamos que houve uma ação de marketing. Um sacerdote que ficou mudo, após conversar com um anjo, e uma mulher estéril que concebeu em avançada idade eram acontecimentos marcantes. Fatalmente causariam assombro e dariam o que falar, particularmente na humilde aldeia onde residiam.

     Importante que João fosse recebido desde o início como alguém consagrado a Deus, que o povo se habituasse a ver nele um grande profeta, pois lhe seria confiada a tarefa de preparar os caminhos para o enviado celeste, há séculos aguardado pelo povo judeu.

 

***

 

     A experiência de Zacarias lembra algo importante:

     Todos temos um anjo de guarda, um mentor espiritual que nos inspira e ampara na jornada humana. Um amigo reclamava:

     – Se é assim, os anjos de guarda lá em casa andam de férias. Meu filho foi reprovado nos exames; minha filha adolescente envolveu-se com um rapaz e ficou grávida; minha mulher bateu o carro; nosso cão foi atropelado por um automóvel e eu, num momento de irritação, dei um tapa na mesa e fraturei a mão.

     Há aqui um equívoco em relação à atuação dos protetores espirituais. Não são babás à nossa disposição, diuturnamente.

     Não é sua obrigação evitar transtornos como: a reprovação do aluno displicente; a gravidez da jovem inconsequente; o acidente com o motorista distraído; o atropelamento do cão negligenciado; a fratura resultante de ato irracional.

     Sua função é inspirar-nos ao bem, ao cumprimento de nossos deveres. O protetor espiritual atua na intimidade de nossa consciência. É a voz inarticulada que nos alerta:

     Cuidado! Controle-se! Cultive a prudência. Olhe por onde anda!

     Ele tem poderes para evitar que nos atinjam certos males e o faz frequentemente, sobretudo em relação à nossa estabilidade física e psíquica. Não fosse por ele, bem maiores seriam nossas dificuldades e problemas.

     Mas deixa que colhamos as consequências de nossas ações, a fim de que aprendamos a respeitar as leis da Vida, as regras de bem viver.

     Assim como a mudez de Zacarias marcava acontecimento auspicioso, inúmeros males que nos afligem situam-se como gloriosos marcos de renovação que nos estimulam a repensar a existência, induzindo-nos a procurar os valores espirituais.

     Assim muitos descobrem as bênçãos da religião.

     Assim muitos se aproximam de Deus.

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