31 de março coincide em ser uma data de luto em dois sentidos. Brasileiros que amam a liberdade, que acreditam em direitos humanos e não são afeitos a tortura, censura, perseguição política e assassinatos, se enlutam ao relembrar o golpe de Estado de 1964, que estabeleceu uma longa ditadura, cujas consequências ainda vivemos hoje, em pleno século XXI. Para espíritas, brasileiros ou não, esse é o dia da morte de Kardec. E hoje, faz 152 anos que ele desencarnou (para usar uma expressão muito popular entre espíritas).
Para os espíritas progressistas brasileiros, que se lembram de Kardec nesta data e que se enlutam pelo golpe de 64, há talvez um luto duplo, porque muitos adeptos apoiaram esse golpe de 57 anos atrás e muitos outros elegeram e apoiam esse atual (des)governo, que louva a tortura, a violência e o desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão.
Por isso, importante mostrar quem foi Kardec, o que ele fez, como se posicionou e as dificuldades que enfrentou em sua vida como Rivail, educador e como Kardec, fundador do espiritismo.
Nascido em Lyon em 1804, o menino Hippolyte Léon Denizard Rivail já começou a sua existência com alguns fortes traumas na infância. Seu avô materno havia sido guilhotinado durante a Revolução Francesa. Seu pai foi preso pela mesma Revolução, depois solto, porque era partidário dela – mas teve que se engajar nas guerras napoleônicas e veio a desaparecer, (portanto morrer) sem deixar traços. A certidão de casamento de Rivail com Amélie Boudet registrava seu pai, como desaparecido. Ainda na infância, ele perdeu uma irmã e um irmão e foi criado em Bourg-en-Bresse pela mãe, pela avó e por um tio.
Aos 11 anos, foi estudar em Yverdon, na Suíça, com o mestre Pestalozzi. Embora Pestalozzi fosse um tutor amoroso e toda a sua proposta educativa fosse de liberdade, afeto e desenvolvimento integral, ainda assim, tratava-se de um internato, em outro país, longe do carinho da mãe e da avó. Provavelmente, Louise Rivail, a mãe, queria ver o filho educado na melhor e mais inovadora escola da Europa e também afastado das convulsões políticas da França.
Ao retornar já adulto para Paris, Rivail inicia uma vida de militância pela educação e permanentes dificuldades financeiras. Ele mesmo denuncia em seus escritos da época o quanto a educação não era valorizada, o quanto os educadores eram socialmente desprezados (lembra alguma coisa?) e ele, como herdeiro de Pestalozzi e Rousseau, estava convencido de que apenas uma educação para todos, livre, pública e laica, poderia de fato mudar a sociedade.
Já aos 24 anos, escreve um texto muito atual e interessante, em que pleiteia uma educação pública de qualidade: Plano proposto para a melhoria da educação pública (ver o livro Kardec Educador, Editora Comenius).
Pelos próximos 30 anos de sua vida, ele vai se engajar em diversos projetos educacionais: fundou escolas, dava aulas gratuitas para adultos, militou pela educação feminina, ao lado de sua esposa Amélie, também educadora.
Com Maurice Lachâtre, um editor anarquista, fundou em 1834 um Banco do Povo, em que se faziam créditos e trocas de serviço, para pessoas excluídas dos grandes bancos. Uma ideia que depois Proudhon, um dos teóricos do anarquismo, faria valer em suas obras e experimentações. Esse Banco do Povo, que também devia ajudar em seu próprio sustento, faliu e Rivail continuou em sua luta diária por estabilidade financeira, que nunca alcançou.
Hoje, em documentos inéditos, descobertos recentemente, sabemos que Hippolyte e Amélie enfrentaram uma profunda dor, com a perda de uma filha de uns 10 anos de idade. Sempre se supôs que eles não tivessem tido filhos. Não se sabe ainda se essa filha era carnal ou adotiva, mas a perda está registrada em cartas autênticas.
Quando se estabelece na França a ditadura de Napoleão III, que rasgou a ainda frágil República Francesa e instituiu de novo o Império – Rivail teve que deixar a educação. A lei Falloux restringia a liberdade de ensino e devolvia à Igreja Católica a hegemonia.
Foi por essa época que apareceram na Europa, vindos dos Estados Unidos, os fenômenos das mesas girantes e Rivail foi chamado a examinar aquilo que tinha se tornado uma febre nos salões de Paris.
A princípio cético, descrente mesmo, Rivail acabou por se interessar pelo que estava observando e entreviu que alguma coisa havia ali, além da brincadeira de salão.
Seu espírito observador, meticuloso, cauteloso passou a estudar o assunto e depois de testar várias hipóteses para a explicação dos fenômenos, chegou à conclusão de que eram Espíritos que falavam primeiro pelas mesas e depois pelos médiuns que psicografavam em grande velocidade, com grafias diversas e com ideias e informações a que eles e as pessoas presentes não tinham tido acesso.
Mas Rivail não ficou no fenômeno: em diálogo com Espíritos de diversas categorias, por diferentes médiuns, construiu uma filosofia espiritualista, reencarnacionista, progressista e resgatou a ética cristã dos escombros do dogmatismo das igrejas.
Foi caluniado, perseguido tanto por acadêmicos quanto por religiosos, mas o Espiritismo conheceu um grande sucesso na França do século XIX, tendo declinado depois das duas grandes guerras, para enraizar-se profundamente na cultura brasileira, onde se desdobrou em reinterpretações, aculturamentos e dissidências.
O espiritismo proposto por Kardec representava na época uma visão progressista da sociedade: tinha ligações com as reivindicações femininas pelo voto, por educação e participação social; tinha diálogos com os socialistas utópicos; tinha fortes heranças iluministas e, portanto, prezava a liberdade de expressão, a justiça social e a igualdade de direitos fundamentais de todos os seres humanos. Tudo isso está muito claro no Livro dos Espíritos.
Há traços nas obras de Kardec que hoje podem nos parecer conservadores? Há. Afinal, são 150 anos, havia o contexto da época. E não podemos nos esquecer que Kardec constituiu o espiritismo em plena ditadura napoleônica. Para fundar a Sociedade de Estudos Espíritas de Paris, teve que pedir autorização da polícia e assumir o compromisso de não tratar de política. Seu amigo, Maurice Lachâtre, teve que se exilar na Espanha. Victor Hugo estava exilado na Ilha de Jersey.
Quando, em 1864, Kardec envia livros espíritas para Lachâtre na Espanha, assistimos ao último ato da inquisição espanhola. Os livros são queimados em praça pública, a mando do bispo local.
Entre todas essas coisas, o que mais considero importante na contribuição dada por Kardec é que ele com seu espírito racional, dessacraliza a revelação espiritual, passa sob o crivo da crítica as manifestações do transcendente – criando uma proposta de espiritualidade crítica, emancipada, desierarquizada. Coisa que foi se perdendo no movimento espírita brasileiro, com suas tendências atávicas de submissão religiosa.
E disse ainda Kardec que o espiritismo sempre estaria alinhado com as ideias progressistas da sociedade.
Então, hoje, 31 de março de 2021, em nome dos espíritas progressistas, que nos reivindicamos como legítimos seguidores de Kardec, homenageamos a contribuição desse grande mestre e também proclamamos com todas as letras: Ditadura nunca mais!
Duas coincidências tristes neste 31/03: com a desencarnação de Kardec, começaram os desvios e as adulterações na doutrina, a ponto de adulterarem a obra magnífica dele.
ResponderExcluirNo Brasil, a lembrança do triste dia que durou 21 anos, mas deixou consequências nefastas, como a que levaram a esse desgoverno e à fascinação coletiva dos que o apoiam.