A vida é um processo dialético permanente. A partir desse conceito é natural que haja o espírita progressista-conservador e o conservador-progressista.² Ou há uma régua que delimita o progressista do conservador?
Creio que sempre há gradações, como em todas as posições, que vão desde os radicais de direita, chegando a o que chamamos de extrema-direita, até os radicais de esquerda, que podemos chamar de extrema-esquerda.
Observando os aspectos doutrinários ressaltados em O Livro dos Espíritos e mesmo em O Evangelho Segundo o Espiritismo, os livros de Kardec mais estudados pelas casas espíritas, não vejo com tanta naturalidade esse desvio para um lado conservador, beirando ao reacionário.
Creio que boa parte desses desvios está na dedicação às obras que não estão diretamente relacionadas com Kardec, mas sim ao conservadorismo implantado pela adoção sem qualquer senso crítico das obras do Ermano Manuel, mais conhecido como Emmanuel (Freitas Nobre pergunta a Chico Xavier, em um Pinga-Fogo, se Emmanuel assinava E. Manuel, por referência à personalidade como teria encarnado, Manuel da Nóbrega; e Chico confirma a informação), André Luiz, Humberto de Campos, Joanna de Ângelis e outras de caráter não tão denso nem tão doutrinário como as que Kardec nos legou.
Podemos debater muitas coisas nas casas espíritas – até mesmo, Kardec; contudo, questionamentos sobre as obras desses Espíritos, supostamente complementares às obras fundamentais, são totalmente rechaçados, como se fossem sagrados.
Além disso, o impedimento de questionamentos de ordem política, especialmente se tiver questionamentos relativos à ordem social, são considerados como “coisas de comunistas”; logo, debates que permitam estimular um envolvimento social são absolutamente vetados, permitindo que determinadas ideias equivocadas fiquem encasteladas nas casas espíritas, tornando-as locais opressores, não libertadores.
Há comentário que circulam que há uma identidade dos progressistas com a Confederação Espírita Pan-Americana – CEPA. É do conhecimento que a CEPA defende a filosofia moral de Jesus mas defende um Espiritismo laico? O que há de verdadeiro nisso?
Até onde eu saiba, especialmente a partir do estudo da tese de doutorado No princípio era o verbo, de Celia Arribas, a CEPA trata a doutrina espírita como ciência, filosofia e moral, o que parece ser mais justa do que o componente religioso e igrejeiro, como diria Herculano Pires, e que se tornou hegemônico no Brasil.
O próprio Kardec defendia a não existência de rituais; contudo, a leitura de página (geralmente, de Ermano Manuel), passe e água fluidificadas acabaram incorporadas à rotina de diversas casas, a ponto de estranharmos quando não temos essas práticas em alguma reunião. A própria prece costuma ser colocada como um ritual, seja de abertura, seja de encerramento; no entanto, se você já procura se manter com pensamento elevado, a prece acaba sendo uma espécie de cereja do bolo, mas que pode ser feita mesmo antes de você estar em qualquer ambiente, seja ele espírita, laboral, doméstico... Enfim, em qualquer lugar.
Creio que deveríamos pensar melhor sobre este assunto e a maneira como poderíamos ressaltar a moral cotidiana em vez de valorizarmos essas práticas, muitas vezes chamadas de medicina espírita, que nada mais é do que uma adaptação das religiões orientais. Não digo que devamos simplesmente jogar tudo fora, mas parar para analisar até que ponto que o fazemos no “piloto automático”.
Um exemplo: estamos há meses com as instituições fechadas e sem tomar passe nem água fluidificada. Alguém piorou de saúde por isso? Acredito que não; no entanto, se você procura manter o pensamento elevado, procura ler e estudar obras edificantes, desenvolve a resiliência, faz suas preces de maneira sincera, além de outros procedimentos para manter a saúde mental equilibrada, certamente já realizaremos um trabalho medicinal interno, ajudando a manter a conexão com Espíritos mais elevados.
Os espíritas progressistas negam algum aspecto doutrinário do Espiritismo?
Creio que os conservadores e reacionários, e não os progressistas, negam os aspectos doutrinários do Espiritismo ao adotar obras escritas por um Espírito somente por ela conter algumas palavras bonitas e supostamente consoladoras, mas, muitas vezes, absolutamente rasas, sem trazer questionamentos e esclarecimentos mais profundos, conforme requereria um estudo realmente espírita.
O Espiritismo, antes de tudo, deve ter um caráter científico-filosófico; isso significa que nada pode ser adotado sem um debate sincero e crítico, procurando perceber se os fatos são lógicos e passam pelo crivo do bom-senso.
Atualmente, tenta-se buscar adeptos com essas leituras, que mais parecem livros de autoajuda, e não uma tentativa de compreensão do mundo em que vivemos. Afasta-se a ciência – a não ser que ela confirme as obras espíritas; deixa-se o questionamento de lado – esquecendo que a própria doutrina somente surgiu porque Kardec questionou as mesas girantes; e abraçam-se obras de cunho duvidoso, deixando de lado qualquer critério de lógica e bom senso.
Lembremo-nos de que no Catálogo Racional de Obras para se fundar uma Biblioteca Espírita, Kardec recomendou ler obras contrárias à doutrina, pois o objetivo não é formar uma nova seita, mas sim deixar que as pessoas cheguem às próprias conclusões autonomamente. Mais doutrinário do que isso, creio que seja impossível
Você fez menção na entrevista anterior que o movimento negro se incomoda com o racismo em Kardec. Fale mais a respeito.
Esse é um ponto bastante delicado e que mereceria um debate bem mais profundo. Em diversas passagens, levando em conta o contexto científico da época, Kardec e Espíritos deixam a entender que os europeus seriam superiores em relação a outros povos, muito provavelmente por conta do meio em que vivia.
Não podemos nos esquecer de que estamos falando de uma obra escrita no século 19, e que o meio científico mudou bastante de lá para cá. Além disso, desenvolvemos a consciência do racismo estrutural, que impede que pretes, pardes e outros grupos étnico-raciais e cheguem a patamares de prestígio em nossa sociedade, como indígenas e orientais, por exemplo.
A polêmica maior estaria relacionada à possibilidade de mudança nos textos como forma de retirar essas passagens polêmicas, conforme o vídeo do ativista Antonio Isuperio - (Racismo e Espiritismo). Creio que seria bom ver esse vídeo, ler os livros e analisar tudo; contudo, sou a favor de que haja um debate profundo para tratarmos desse assunto de maneira madura e de forma a chegarmos a um denominador comum – até porque já temos polêmicas com relação a mudanças ocorridas nas edições dos livros O Céu e o Inferno e A Gênese após a desencarnação de Kardec, prejudicando o entendimento do que o próprio Kardec tinha.
Além desse ponto, sou a favor de revisões periódicas da obra para o aproveitamento de aspectos científicos, a fim de manter essa ponte com a ciência – pode-se não mudar o texto, mas se podem colocar notas explicativas pontuais. O problema é que vejo que as ciências humanas e os movimentos sociais são desprezados nesses debates, como se fossem grupos de menor prestígio, em detrimento de outros, que possuem maior prestígio social e mais recursos financeiros. Se alguém está incomodado com a obra, deve ser ouvido e ter sua reclamação analisada para entendermos o problema e verificarmos, em conjunto, qual solução seria a melhor a ser tomada.
Há algum ponto de convergência entre os espíritas progressistas com os católicos e protestantes progressistas, por exemplo. O papa Francisco é considerado progressista.
Certamente. Um dos maiores exemplos é o fato de o coletivo de que sou membro participe de um canal de espiritualidade plural, chamado Paz e Bem – curiosamente, expressão atribuída a Francisco de Assis.
Quanto mais nos integramos com outros movimentos religiosos que têm o objetivo de melhorar a situação social, mais nos entendemos entre nós e entendemos que pouco importa se adotamos uma postura doutrinária, seja esta, seja outra, seja nenhuma: todos queremos uma sociedade mais justa, e que repudiamos o uso dos textos de estudo, sagrados ou não, que são utilizados para oprimir as classes populares, tornando a miséria natural ou divina. Não há nada de divino nem natural na miséria, que é fruto do egoísmo humano – informação confirmada pelos próprios Espíritos – e o capitalismo é fruto maior desse egoísmo, valorizando o lucro em vez do ser humano, categorizando as pessoas por meio de critérios arbitrários, considerando-as aproveitáveis ao sistema ou repudiáveis.
Nenhum ser humano é descartável, pois todos tivemos uma origem espiritual comum, independentemente do que cada doutrina teorize. E as religiões têm sido usadas para perpetuar essas diferenças sociais, como se fossem sagradas. Não dá para aceitar pregar que somos todos iguais, se ajudamos a manter o status quo.
Olá, Filipe!
ResponderExcluirA exemplo da outra, excelente material para esclarecer muitos espíritas. Jorge Luiz