Um dos primeiros conceitos que o profitente à fé espírita aprende é o tríplice aspecto do Espiritismo – ciência, filosofia e religião.
Esse conceito não se irá encontrar em nenhuma obra da codificação espírita. O conceito, na realidade, foi ditado pelo Espírito Emannuel, psicografia de Francisco C. Xavier e está na obra Fonte de Paz, em uma mensagem intitulada Sublime Triângulo, que assim se inicia:
“A Ciência, a Filosofia e a Religião constituem o triângulo sobre o qual a Doutrina Espírita assenta as próprias bases, preparando a Humanidade do presente para a vitória suprema do Amor e da Sabedoria no grande futuro.”
Portanto, é uma particularidade exclusiva do movimento espírita brasileiro e não tem o crivo da universalidade dos ensinos dos Espíritos. Em outros países, principalmente na Europa, o conceito religião não é admitido.
Isso em um primeiro momento pode ser de pouca importância, mas não o é porque modifica e compromete bastante os resultados esperados na contribuição para a regeneração da Humanidade. Ademais, a insistência no debate acerca do Espiritismo como religião é exatamente por ser uma questão determinante para a sua identidade. Este debate é sempre presente até por questões da existência de instituições que não acatam esse aspecto. O próprio Allan Kardec é detalhista nesse aspecto em todas as obras que constituem a Codificação e os números da Revista Espírita. Contudo, há um ponto importante para se deter, que é quando Kardec admite a Doutrina Espírita no sentido filosófico.
Entretanto, em outro momento, ele acentua o que pensa sobre o conceito de religião. Leia-se: “Tudo nas reuniões espíritas deve se passar religiosamente, isto é, com gravidade, respeito e recolhimento.”
O sentido filosófico é a distinção entre a realidade perceptível, mas ininteligível, e a realidade imperceptível, mas inteligível. É a forma de enxergar a dimensão essencial do mundo real e ontológico, ultrapassando a opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis. É fácil de se entender o que Kardec pede, ou seja, ele avança no conceito contemporâneo do que é religião.
Eis, pois, o sentido filosófico de Allan Kardec. Rompe o conceito de religião de espaço que delimita o sagrado (igreja) e o profano (fora da igreja).
Allan Kardec, com sua dialética primorosa, recua no tempo e concorda com o Espiritismo como religião no seu aspecto filosófico e não dogmático. A partir dessa sua afirmativa, o mundo no contexto espírita não se permitirá dividir entre sagrado e profano. O sagrado estará dentro da amplitude moral de cada ser no mundo.
Quem vai auxiliar a melhor entender essa advertência de Kardec é Cristiane A. de Azevedo, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em um artigo: “A Procura do Conceito de Religio: Entre o Relegere e o Religare”. Um trabalho rico bibliograficamente. Nele, a autora mostra que a palavra religião, antes de ser cooptada pelo Catolicismo, estava, como Kardec enfatiza, relacionada a uma questão eminentemente subjetiva. Leia-se Azevedo:
“(...) o termo religio, que pertencia ao cotidiano romano, ganhou extrema importância ao ser, de certa maneira, deslocado de seu contexto original, criando um domínio específico para a religião.”
Fica óbvio, portanto, que o sentido filosófico de Kardec conecta com o sentido original do conceito de religião. A religião para o Catolicismo, no seu sentido de universalidade, passa a ser definida como sagrada apenas, e tão somente, o espaço das Igrejas. Essa visão consolidou-se na cultura religiosa.
Brasil Fernandes de Barros, mestre e doutor em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC MINAS, presta também um serviço relevante ao movimento espírita, ao elaborar um estudo riquíssimo publicado como artigo, intitulado: “Fé Inabalável e Razão: O Significado de Religião para Allan Kardec”. Trata-se de um estudo onde ele procurou entender, por meio de pesquisa bibliográfica, o motivo pelo qual Kardec afirmou que o Espiritismo não era uma religião, bem como investigar a sua perspectiva secular. Pode-se concluir que a maneira a qual Kardec posicionava o Espiritismo em termos de Religião merece todo o destaque aqui:
“Por fim, entendemos que Kardec fez das famílias do Cristianismo (a Igreja Católica e a Igreja Protestante) como suas referências de religião, (...) Dessa forma, em contraponto, afirmou que o Espiritismo não era uma religião, simplesmente por não possuir ritos, símbolos ou sacerdotes, o que fica demonstrado como insuficiente. Concluímos que isso se deu por dois motivos: primeiro porque se para ele, de todas as doutrinas, o Cristianismo era a mais esclarecida e a mais pura, não haveria, portanto, razão para criar nova religião, e sim, agregar as “revelações dos espíritos” ao Cristianismo (ou a outras religiões que aceitassem as concepções do Espiritismo); e em segundo lugar, porque o mesmo não tinha a ideia de fundar uma nova religião, mas sim fornecer elementos para fazer “uma reforma religiosa, [...], com a intenção de chegar à unificação das crenças.” (...) Intenção essa que parece ser cada dia mais inalcançável.”
A questão dos defensores do caráter religioso do Espiritismo sempre o associam à figura de Jesus, pela sua designação por parte dos Espíritos Superiores, como guia e modelo para a Humanidade. (questão nº 625 de O Livro dos Espíritos).
Indague-se, portanto: Jesus fundou alguma religião?
Com a palavra, Ernest Renan, escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês, o primeiro a abordar a questão do Jesus histórico:
“Jesus não é um fundador de dogmas, um inventor de símbolos; é o iniciador do mundo para um espírito novo.”
Continua, Renan:
“Um culto puro, uma religião sem padres e sem práticas exteriores, baseada nos sentimentos do coração, na imitação de Deus, no confronto imediato da consciência com o Pai celeste, eram a sequência desses princípios. Para que intermediários entre o homem e seu Pai? Deus só vê o coração; então para que servem essas purificações, essas práticas que só atingem o corpo?”
Fica patente que Jesus não fundou nem se vinculou a quaisquer categorias de grupos ou associações religiosas que pudessem significar o atual conceito de religião.
Assim, portanto, o tríplice aspecto do Espiritismo, se fosse assim defini-lo, seria, portanto, ciência, filosofia e moral.
Referências:
KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. São Paulo: LAKE, 2000.
_____________ Revista espírita, 1868. Brasília: FEB, 2004.
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. São Paulo: Martin Claret, 1995.
XAVIER, Francisco C. Fonte de paz. São Paulo: IDE, 1997.
SITES:
<https://www.redalyc.org/jatsRepo/3130/313061013015/html/index.html>.
<https://www.redalyc.org/jatsRepo/3130/313061013015/html/index.html
Gostei muito da pesquisa, e é importante combater as distorções provocadas pela leitura de Emmanuel em detrimento das obras fundamentais e da pesquisa científica - esta sim, a base da doutrina espírita.
ResponderExcluirGrato, Filipe!
ResponderExcluirJorge Luiz