– Meu amigo, hoje, no fim desse dia, eu estou precisando de uma pinga para aliviar meus pensamentos! Tem um trocado aí?
Fui abordado por um morador de rua no sinal da Av. Rudge com a R. Sérgio Tomás (São Paulo) com a frase acima. O dia estava quente e os vidros do carro estavam abertos. Eu já o tinha visto, ele e mais um grupo, ao todo umas seis pessoas. Devo dizer que pensei em fechar os vidros, mas resisti, como quase sempre resisto, e dei a oportunidade para que ele viesse me abordar com seu pedido.
Ele se levantou e veio na direção do carro, desliguei o rádio para poder escutá-lo. Eu estava sem um tostão, no caminho, em outros sinais já tinha dado algumas “ajudinhas” para outros sem teto.
– Amigo, hoje não vou poder ajudar!
– Se não tem trocado, tudo bem, aceito notas grandes, até cheque! Ele riu, eu retribuí, ele estendeu a mão para um cumprimento, o que retribuí também. Mãos apertadas, veio a frase que me perturba até agora. Ele abriu a boca para falar algo, não conseguiu, deu para ver que reformulava a frase, segundos depois conseguiu finalmente falar:
– Não precisa de dinheiro não, apertar a mão de um branco fez meu dia!
Foi minha vez de ficar sem palavras. E até esse momento, sem resposta para a pergunta que está rodando em minha cabeça desde esse encontro: quando perdemos nossa capacidade de nos importarmos e deixamos que as coisas chegassem no ponto em que estamos, ponto que privilegia uns em detrimento dos outros, que permite se crie uma entidade (O MERCADO) que seja mais importante do que as pessoas, que por esse MERCADO nós busquemos justificativas para suportar essa entidade e deixamos as coisas como estão, na ilusão de que esse mesmo MERCADO um dia abraçará todas as pessoas igualitariamente?
O que fizemos para que aquele ser humano estivesse na rua e se considerasse tão sem valor, que apenas apartar a minha mão – de um homem branco – lhe dava o conforto de ser olhado?
O espiritismo é evolucionista, ou seja, a partir do momento em que passamos a existir, seguimos aprendendo até chegarmos no momento de entendermos Deus e estarmos aptos a sermos cocriadores, com conhecimento e sentimento pleno, de sua obra.
Mas o conceito de evolução, o da escala dos espíritos, o da escala dos planetas, deve estar confundindo os espíritas. Pois estamos agindo como juízes e não como irmãos! Pela ideia da evolução, colocamos hierarquias e não fraternidade. Vejo esses conceitos de escala de espíritos e planetas, tratados por Kardec no Livro dos Espíritos, como meras informações que nos ajudam a entender começo, meio e fim da jornada, como pontos de referência, de forma didática. Mas há coisas bem mais importantes lá que orientam o que fazer durante essa jornada.
A fraternidade entre todos é a maior verdade, tanto quanto o respeito ao momento de cada um, em seu processo evolutivo. A fraternidade é uma verdade universal e não tem como ser contestada. O momento de evolução de cada um não é uma verdade sólida, apreensível, pelo menos por nós aqui no mundo, pois não há como dizer que alguém está melhor ou pior do que outro. Nesse caso, o que se tem para analisar são características e variáveis, as quais, provavelmente, não podem ser abarcadas em sua totalidade pela observação daqueles que se propõe a esse tipo de análise.
Portanto, o conceito de evolução, sob as condições desse planeta, impõe aos espíritos que deem mais atenção àquilo que é incontestável, como a fraternidade dos espíritos, que têm seus caminhos individuais e coletivos a percorrer. Ou seja, não há como olhar para alguém e dizer que se esse ser humano dorme no frio e com fome é porque é da Lei e faz parte de sua evolução! A base moral e imutável da fraternidade não pode conceber tal pensamento, no qual eu julgo o outro, o que me faz de imediato superior ao julgado e ainda justifico seu sofrimento como um suposto “castigo” da Lei Divina. O pensamento natural, sob o olhar da irmandade, é que preciso ajudar esse irmão!
Os gritos de igualdade, liberdade e fraternidade que embalaram a Revolução Francesa são ideias maiores que qualquer sistema, pois dizem respeito a verdades universais e estão ligadas aos indivíduos, não aos sistemas que os indivíduos criam, sistemas que de coisas criadas passam à condição de criadores conforme se cristalizam na sociedade, ditando a vida das pessoas de forma a enquadrá-las em suas regras, como se a sobrevivência do sistema fosse essencial à vida da sociedade, mesmo se o sistema se torna perverso e vai contra os conceitos básicos que garantam a qualidade de vida do indivíduo.
O espírita tem compromisso consigo e principalmente para com o próximo, não há evolução individual sem a coletiva, nossos pensamentos e ações devem proteger o indivíduo e não os sistemas, todo e qualquer sistema que não garanta o bem-estar da coletividade e que permita um saudável “processo evolutivo” para todos não é benéfico.
Ou seja, estou ligado ao amigo do farol como estou ligado ao corrupto mais corrupto de todos, não há como me desvencilhar disso. Resta-nos, então, colocarmo-nos no lugar de espíritos imortais e aceitar que aqui na Terra há muito trabalho a ser feito, não a favor de uma ideia mas em favor do outro. Além da igualdade, liberdade e fraternidade, para encerrar, acrescento a pedra mais fundamental para nos orientar: amor.
É preciso dizer aos espíritas que não existe Mercado no mundo espiritual, e que pessoas precisam de oportunidades para viver melhor, ter dignidade, e isso somente se modifica mudando as estruturas, que empurra determinadas pessoas a essas condições terríveis.
ResponderExcluirUm adendo: nos países que se autointitulam socialistas e comunistas, não há mendigos nem moradores de rua.