sábado, 10 de julho de 2021

FÉ INABALÁVEL E RAZÃO - O SIGNIFICADO DE RELIGIÃO PARA ALLAN KARDEC - PARTE II

 


2 - RELEGERE OU RELIGARE?

Para compreender o conceito de religião ao qual abraçou Kardec, temos que avaliar algumas questões de cultura7 e conceito. O termo religio, antes de pertencer ao domínio específico do religioso, esteve presente no cotidiano de Roma e foi empregado tanto nos cultos romanos quanto nos cultos da religião cristã. O termo em questão navegou entre duas etimologias possíveis, uma de origem cristã e outra romana, e a pergunta é: como podem dois princípios tão diferentes terem designado coisas tão distintas? Dubuisson explica que a palavra religio “só podia ser o sentido primeiro e muito especializado de uma palavra latina antes ordinária e que permaneceu assim até que os primeiros pensadores cristãos se apoderaram dela e favoreceram seu excepcional destino.” (DUBUISSON, 1998, p. 41).

O significado inicial romano de religio tinha um sentido de escrúpulo em relação ao culto, de um preciosismo em relação aos atos exteriores de adoração, aos quais os Romanos se orgulhavam grandemente, inclusive se autoproclamando, dentre todos os povos, o mais religioso:

“Quando Cícero fala da religião romana, o conceito de religio que utiliza tem como origem etimológica o termo relegere que deixa transparecer a “atenção escrupulosa, o respeito, a paciência, inclusive o pudor e ou a piedade”. A prática religiosa romana está associada ao zelo, a uma relação respeitosa com os deuses que torna necessária a repetição precisa dos ritos. Com isso, a realização correta dos rituais ganha extrema importância já que é a maneira de estar em contato direto com a divindade.” (AZEVEDO, 2010, p. 91).

Segundo esse conceito, é necessário que se empreenda uma escuta escrupulosa, tenaz e atenta ao que dizem os deuses, de forma que se escute aquilo que eles têm a dizer, o que justifica o uso dos oráculos pelos Romanos. Portanto, negligere, neste caso, era exatamente o contrário de religio, ou seja, não escutar o que os deuses diziam era negligenciar a divindade (AZEVEDO, 2010, p. 92). Cabe aqui uma observação: já que em nosso trabalho estamos falando de Espiritismo, a consulta aos espíritos por meio dos médiuns (que são os oráculos modernos) poderia levar a uma associação do Espiritismo, em uma primeira análise, ao relegere; no entanto, não é assim. A interpretação de que os espíritos que se manifestavam pelos oráculos eram deuses foi um equívoco que levou a religião ao erro; Kardec afirma que “do mesmo modo que o sabeísmo8 nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais critério.” (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206-208).

O significado de “religião”, com o sentido de “relegere”, ou seja, de escrúpulo em relação ao culto, passou por transformações e não se alinhou com o sentido com o qual o cristianismo se apresentava no século XIX. Segundo Bouillard, o significado de “religio” não poderia designar aquilo que foi tido como “a verdadeira” religião, pois que era necessário encontrar outro termo que pudesse corresponder à fé cristã. (AZEVEDO, 2010, p. 92).

 

“Assim, uma nova compreensão para o termo surgiu através da imposição de diferenças e de exclusões. Segundo Dubuisson, a religião enquanto domínio radicalmente separado e diferente daquilo que a cerca é uma criação exclusiva e original dos primeiros pensadores cristãos de língua latina como Lactâncio, Tertuliano e Santo Agostinho. Ao se criar um domínio específico para a religião, surge também o espaço do não religioso, do profano: “a diferença e a superioridade que ela [religião] reivindicava para si mesma enquanto religião verdadeira reservada ao Deus verdadeiro [...] fazia apelo à necessidade do mundo profano”. Nesse mesmo sentido, Benveniste afirma que só se poderia conceber claramente a religião a partir do momento em que ela é delimitada, quando ela ganha um domínio distinto, onde pode-se saber o que lhe pertence e o que lhe é estranho. (AZEVEDO, 2010, p. 92).”

 

Diante disso, era necessário estabelecer uma origem etimológica própria para o religio-relegere, considerando que essa se referenciava às práticas exteriores e não à “verdadeira” religião que se dirigia ao “verdadeiro” Deus, a divindade única, já que o sentido era de estabelecer a ligação do ser humano com Deus, o religare como propõe Lactâncio. No primeiro conceito, segundo Lactâncio, no religio-relegere de culto aos deuses, o indivíduo está separado dos mesmos porque não se busca a sabedoria, porque aqui não há preocupação com a moral, e sim apenas uma preocupação com o rito exterior. Para ele, ainda mesmo a filosofia não alcança a Deus, pois não se encontra com a piedade, já que só o Cristianismo seria a verdadeira filosofia: “a verdadeira sabedoria para os pensadores, a verdadeira religião para os ignorantes.” (LACTÂNCIO, apud AZEVEDO, 2010, p. 93). Dessa forma, a verdadeira religião consistiria no laço de piedade que nos une a Deus, e aos homens caberia servir e obedecer ao Deus único e verdadeiro.

Entendemos que embora Kardec não tenha deixado uma relação explícita com Lactâncio, os aspectos morais do Espiritismo guardam correspondência a esse pensamento quando escreve que:

 

“Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, e a prova disso é que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com as observações espíritas. O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes de toda questão dogmática. É verdade que tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas consequências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência.” (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 205, grifo nosso).

 

No texto acima, Kardec não só reafirma a sua posição de independência de pensamento em relação à religião oficial, como ainda marca sua posição de uma perspectiva secular9, quando diz que os homens podem procurar suas crenças com liberdade. Estabelece também com clareza que entende o Cristianismo como sendo a sua referência maior de moral e religião. Ele complementa ainda, dizendo que o Espiritismo não é religião porque não possui cultos, templos, ritos ou ministros:

 

“O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande distância e creio que seria imprudência seguir tal ideia.” (KARDEC, [1859]/(2007a), p. 206).

 

Com essas afirmações, é possível identificar que Kardec faz, sem sombra de dúvidas, um contraponto do Espiritismo com as religiões mais influentes de sua época, particularmente o Cristianismo, mas não se afasta do seu conceito particular de que religião se alinha ao religare de Lactâncio. Apesar disso, traz uma perspectiva secularizada do entendimento de religião, o qual aprofundaremos mais à frente, e separa esse conceito da instituição, ao falar da constituição de “nova Igreja”. Observe-se que ele não fala em Igreja Católica ou Igreja Protestante, mas em Cristianismo (com “C” maiúsculo), englobando, segundo o nosso ponto de vista, as duas vertentes religiosas como famílias de religião, já que o mesmo foi educado em instituição protestante em Yverdon, na Suíça, no Instituto Pestalozzi, tendo sido católico de batismo. Para ele, o Espiritismo não é, pois, religião, porque o Cristianismo é “A Religião” e que tem seus fundamentos nas questões morais (religare) e não de forma exterior (relegere); e o Espiritismo, como não possui as mesmas características, não poderia ser tratado da mesma forma.

Nos textos de Kardec acima, fica então evidenciada a preocupação com consequências morais e uma desvinculação com o culto exterior e com os ritos, o que deixa bem claro o alinhamento de Kardec com o religare, e não com o relegere.

 

Referências:

 

7 Como conceito de cultura, nos apoiamos em Geertz, que afirma que: “[...] o conceito de cultura [...] denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. [...] o conceito do significado, em todas as suas variedades, é o conceito filosófico dominante da nossa época.” (GEERTZ, 1978, p. 66).

8 Sabeísmo era a religião dos antigos sabeus, do Reino de Sabá, no atual Iêmen. Era uma religião baseada na adoração dos astros.

9 No nosso trabalho, tratamos o que é secular no sentido da contraposição que se fazia ao religioso pela visão de ciência que o mundo vivia àquela época, questionando a autoridade formal da Igreja. “Inúmeras vezes antes da Reforma, a fronteira entre o religioso e o secular foi redesenhada; mas a autoridade formal da Igreja permaneceu sempre preeminente. Nos séculos seguintes, com o surgimento triunfal da ciência moderna, do modo moderno de produção e do Estado moderno, as igrejas elas mesmas assumem uma posição clara acerca da necessidade de se distinguir o religioso do secular, transferindo, como de fato o fizeram, o peso da religião cada vez mais na direção das disposições e motivações do indivíduo crente. A disciplina (intelectual e social) iria, nesse período, gradualmente abandonar o espaço religioso, cedendo seu lugar à ‘crença’, à ‘consciência’ e à ‘sensibilidade’.” (ASAD, 2010, p. 269).

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