quarta-feira, 13 de julho de 2022

BRUMAS DO FUTURO - ENTRE SENSAÇÕES E SENTIMENTOS

 

Por Jorge Luiz

            Na Revista Espírita, de janeiro de 1863, Allan Kardec insere uma carta recebida de Nova York, na qual contém em detalhes a horrível linchagem a que foi submetido um jovem negro acusado de atentado ao pudor de uma mocinha branca.

            Na reunião do dia 28 de novembro de 1862, foi colocada a questão aos Espíritos, por se tornar incompreensíveis os exemplos de ferocidade isolados e individuais os quais ocorrem em sociedades ditas civilizadas. Apesar de o Espiritismo explicar a inferioridade de determinados Espíritos, extraviados em uma sociedade mais avançada, esses Espíritos revelaram na presente situação a baixeza dos seus instintos.

            A pergunta é encerrada de uma maneira muito sugestiva e válida para o Brasil dos dias atuais:

 

“O que se compreende mais dificilmente é que uma população inteira, que deu provas da superioridade de sua inteligência e, mesmo, em outras circunstâncias, de sentimentos humanitários, que professa uma religião de brandura e paz, possa ser tomada por tal vertigem sanguinária e, com uma raiva selvagem, se repaste nas torturas de uma vítima. Aqui há um problema moral sobre o qual pediremos aos Espíritos a gentileza de nos instruírem.”

 

            O Espírito que repostou a mensagem faz uma relação entre as tendências ao progresso humano na região do ocorrido, em contrapartida com a chuva de maldições que a atinge, chamando a atenção para os desígnios de Deus que não tardarão a agir, apesar da dissimulação costumeira que se tentam fazer para se atenuar o alcance do crime.

 

“Os interesses humanos e seus apetites sensuais, as satisfações do orgulho e da vaidade estão sempre como móveis, e essas mesmas causas resultarão em consequências necessárias para se contrapor a essas iniquidades.”

 

            Como se pode observar pelo teor da resposta em sua introdução no parágrafo anterior, a sofreguidão do homem em busca do progresso material o faz esquecer-se do verdadeiro progresso real, como os dias tortuosos que a Humanidade trilha quando despreza a vida humana e coloca em risco a sustentabilidade da Terra e o seu próprio futuro. Adverte que é necessário dar o valor exato às questões materiais, priorizando-se os valores que embelezam a alma. Diz ele:

 

“o aperfeiçoamento do coração, as luzes da consciência, a difusão dos sentimentos de solidariedade universal dos seres, o da fraternidade entre os humanos, são as únicas marcas autênticas que distinguem um povo na marcha do progresso geral.”

 

            Lidos esses caracteres virtuosos, como em um espelho, projetam-se reflexos em cada um de nós, resultado do autoengano causado pelo desconhecimento de si mesmo; essa propensão humana é fonte inesgotável de danos e malefícios na vida em sociedade e privada. (saiba mais) O autoengano, tome-se nota, é a pretensão ilusória e infundada do autoconhecimento. As emoções ou sensações (presas ainda aos instintos/atavismos) de mal-estar causado pelo infortúnio cujos sentidos se voltam, são confundidas com sentimentos, conquistas valiosas do curso evolutivo, que se vão aprimorando através das vivências, das longas reencarnações. O Espírito Lázaro, em uma beleza poética, ensinando acerca da Lei do Amor, no capítulo XI de O Evangelho Segundo o Espiritismo, expressa-se claramente sobre esse estágio evolutivo do Espírito: “No seu ponto de partida, o homem só tem instintos; mais avançado e corrompido, só tem sensações; mais instruído e purificado, tem sentimentos; e o amor é o requinte do sentimento.” (grifo nosso).

            Eduardo Gianetti, professor e economista, acerca do autoengano, adverte:

 

“Se o animal humano expulso do paraíso foi punido com a consciência da morte e a vergonha de ser quem é, ele recebeu também da natureza o dom de uma esperança selvagem e inexplicável: a cegueira salvadora e iluminada que nos protege de pensar e de viver plenamente o peso absurdo dos nossos erros e a certeza do nosso fim. Alegria sem razão de viver”.

           

            São tomados por parâmetro exemplos atrozes desse desconhecimento que se tem de cada um de nós. Duas tragédias. Dois crimes bárbaros ocorridos no Brasil e que resultaram na morte de três seres humanos. O primeiro, a de Genivaldo Santos, ocorrido em Umbaúba, Sergipe, quando policiais rodoviários federais, pagos para cuidar da segurança do cidadão, improvisaram uma “câmara de gás” no porta-malas de uma viatura e asfixiaram a vítima com gás lacrimogênio, levando-o a óbito por insuficiência respiratória. O segundo ato criminoso envolveu as mortes do indigenista Bruno Araújo e do jornalista inglês Dom Philips, assassinados com arma de fogo, com munição utilizada para caça, com múltiplos balins – esferas de chumbo ou aço que se espalham após um tiro de espingarda.

Os episódios causam torpor em qualquer indivíduo com o caráter insculpido com as virtudes enunciadas descritas na mensagem recebida na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Apesar das sensações expressas, por ainda não serem caracteres morais, impedem o indivíduo de ampliar a sua criticidade ética, buscada nos valores espíritas, e de identificar crimes capitais nos dois eventos, praticados pelo Estado e pela sociedade. Enumere-se alguns deles:

 

a)    morte por tortura;

b)    intolerância ao diferente;

c)    racismo estrutural;

d)    militarização do Estado  e da sociedade (armamentos) com apelos à volta da ditadura;

e)    perseguição às minorias sociais (negros, índios, quilombolas, pobres);

f)     devastação sem controle da Amazônia, causando prejuízos à vida do Planeta;

g)    ameaças à soberana do País com ocupação de áreas de fronteiras pelo narcotráfico, pesca e garimpo ilegais, prejudicando as ações de cartéis que atuam na região, com transporte de armas e drogas, pistolagem e lavagem de dinheiro, crimes que Bruno Araújo combatia e foram objetos de sua demissão do quadro de servidores públicos federais. Já havia notificação ao Ministério Público Federal acerca desses crimes.

 

 

Fato emblemático oferece o poeta Renato Russo. Em uma de suas entrevistas, ele relatou perplexo que, em seus shows, o público sempre exigia a música Pais e Filhos. A poesia fala do suicídio, e ele não gostava de interpretá-la, pois fez parte de um momento difícil de sua vida. O fato é que o público se tocou no sensorial pelos seguintes versos: “É preciso amar as pessoas/Como se não houvesse amanhã/Por que se você parar pra pensar/Na verdade não há.” Os sentimentos, em essência, faziam parte de uma relação conflituosa entre os pais com um filho adolescente, envolvido em bebidas e drogas, à beira de um suicídio, que se perdeu pela falta do pensamento operacional capaz de sentir a profundidade dos conflitos existenciais que se passam no cotidiano da sociedade.

 

Esses fatos não são pontuais, compõem o cotidiano do Brasil, agora recrudesceram diante do posicionamento autocrático e fascista do atual mandatário, mas, na realidade, é um espectro de cada brasileiro a refletir nesses acontecimentos. A sociedade brasileira, em síntese, é assim. Incompreensível no meio espírita? Deixou de ser para mim.

E o Espírito que assina a mensagem em análise, conclui de uma forma primorosa que soa como convite que sugere reflexões em cada um de nós:

 

“Só por esses caracteres se reconhece uma nação como a mais adiantada. Mas aquela que em seu seio ainda alimentam sentimentos de orgulho exclusivista e não veem tal porção da Humanidade senão como uma raça servil, feita para obedecer e sofrer, experimentarão, sem sombra de dúvida, o nada de suas pretensões e o peso da vingança do Céu.”

 

A vivência espírita não permite comportamentos seletivos na vida em sociedade. O mundo se encontra em uma bifurcação entre a civilização e a barbárie, e a mudança de rota se realiza em cada indivíduo. Em nós, espíritas, o paradigma espírita é a rota, a sintonia e a afinidade com os sentimentos e não com as emoções, que muitas vezes são norteadas e conduzidas pela própria estrutura das reproduções sociais. Friedrich Nietszche, filósofo prussiano (1844-1900), captou muito bem esses sentimentos:

 

“A primeira opinião que nos ocorre quando subitamente nos perguntam sobre algo geralmente não é nossa, mas apenas a habitual referente à nossa casta, posição, origem; nossas próprias opiniões raramente chegam ao topo.”

 

Na realidade, é a ausência de pensamento operacional que norteia o autoconhecimento, que se passa como já comentado, pelo aprofundamento guiado pela filosofia espírita. O autoconhecer-se é isso, fazer como o Espírito Santo Agostinho, em resposta à questão nº 919 “a” de O Livro dos Espíritos:

 

“Fazei o que eu fazia quando vivi na Terra: no fim de cada dia interrogava a minha consciência, passava em revista o que havia feito e me perguntava a mim mesmo se não tinha faltado ao cumprimento de algum dever, se ninguém teria tido motivo para se queixar de mim. Foi assim que cheguei a me conhecer e ver o que em mim necessitava de reforma.”

 

Isso é tarefa individual, indelegável e urgente.

 

REFERÊNCIAS

GIANETTI, Eduardo. Autoengano. Ebook. Cia de Bolso, 2008.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. São Paulo, 1996.

_____________. O livro dos espíritos. São Paulo, 2000.

_____________. Revista espírita – janeiro de 1863. Brasília, 2004.

 

 

N.A. Quando conclui esse artigo não havia ocorrido o episódio de Foz de Iguaçu(PR), quando um bolsonarista assassinou um integrante do PT, loc

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