O que faz com que um indivíduo em uma relação afetiva alimente expectativas acerca do outro, acarretando nele e no seu amado, consequências nem sempre felizes?
Mesmo sendo um sentimento bastante abordado pela filosofia, o amor ainda permanece bastante preso ao campo do pensamento teórico-abstrato. Ainda não amamos com desenvoltura e isso indica o quão estamos distantes da arte de gerenciar emoções e sentimentos. Numa tarde domingo, após proferir uma palestra sobre o ódio, fui interpelado por uma ouvinte. Maria, nome que usarei para preservar sua identidade, apresentou-se como portadora de um ódio crescente, sufocante e contrário a tudo aquilo que ela entendia como amor. Desolada, ela desabafa dizendo ter sido trocada por uma mulher mais nova após ter dedicado trinta e dois longos anos de sua vida ao esposo. Com isso sua vida não encontrou mais tranquilidade, parte integrante de seu ser havia desaparecido e perdão tornara-se apenas mera palavra figurativa e sem grande significado. Ora, como os seres humanos vivem em conflitos, suas relações também serão, forçosamente, conflituosas e inconsistentes. Desconhecer evidente conceito é negar a realidade na qual estamos inseridos.
A conversa com Maria não foi nada fácil. Com o coração despedaçado, sua mente rechaçava qualquer convite à racionalidade. Antes de qualquer coisa é preciso que compreendamos que nosso maior compromisso enquanto humanos é com a vida. O viver, mesmo com todas as suas dificuldades é uma aquarela de cores vibrantes. Identificar isso é regra áurea para nos sentirmos bem. Quando vivemos o fim de um relacionamento afetivo sentimos a forte dor do desamparo, além de ficarmos presos a fragmentos nostálgicos de um passado eufórico que teimamos em eternizar. Para entendermos nosso compromisso com a vida, precisamos abandonar essa forma arcaica de amar, esse sentimento disfarçado de certo cuidado especial, que sonega afeto aprisionando o objeto amado.
A vida a dois será sempre um eterno monólogo. Nunca chegaremos a um consenso mútuo. É preciso aceitar que a solidão do outro não deixa de ser sozinha pelo simples fato de unir-se a nossa solidão. Na verdade, são duas solidões que se aconchegam tornando a vida mais suave a partir da habilidade da proteção compartilhada, da sintonia; jamais por uma simbiose vampiresca a sorver nossa individualidade. Ciúmes, cobranças, culpabilidade são chancelas da discórdia abrindo veredas na estrada do tempo e enterrando sob a memória um sentimento que outrora nos preencheu. Infelizmente, a poesia do amor não é fácil de ser recitada. Através desse amor infantil escravizamos e nos deixamos escravizar. Elegemos o amado como objeto final de nosso amor e para ele transferimos total poder. Com isso, renunciamos ao nosso compromisso com a vida. O amor de transferência é via de mão única na qual acreditamos amar mais e melhor do que o objeto amado. Esse tipo de relação doentia não proporciona reciprocidade, ao contrário distancia gradativamente os amantes. No início, somos absorvidos pelo discurso inebriante da paixão. Ah! A paixão! Esse alucinógeno que nos rouba a lucidez. Para quem diz amar, os defeitos permanecem submersos por um tempo. Mas o amor humano é de se exasperar e quando o furor da paixão cede lugar à calmaria da rotina do cotidiano, o objeto amado começa a ser incômodo naquilo que antes fazíamos de conta não ver. Abrimos mão da racionalidade e da nossa liberdade e criamos um abismo entre nós e o outro. Já não nos reconhecemos mais frente um ao outro.
Os amantes são paradoxais. Alardeiam amor eterno, mas detestam e aprisionam em nome desse mesmo sentimento. Imersos na euforia, divagam o pensar menosprezando a intelectualidade para beneficiar aquilo que denominamos “sentimento puro”. Amar assim é acender a chama da infelicidade. Dizem que quem ama espera, no entanto, não sabe esperar o tempo do outro; que quem ama suporta, mas esquece de suportar o próprio peso da ansiedade, da insegurança dentro de si. No fundo somos todos ingênuos ao acreditar na eternidade de algo que por si só é finito. Refiro-me aqui exclusivamente ao amor “eros”. O eros vem do grego e significa “o amor romântico”. Entretanto, esse conceito de amor não se restringe simplesmente a natureza sexual. Este pode ser interpretado como um amor para alguém que você ama mais do que o amor de “philos” que significa amizade. Sem a emancipação do outro em todos os aspectos multivivenciais, o amor é incapaz de se retroalimentar para permanecer vivo. A complexidade da sexualidade e de suas relações afetivas não pode ser explicada através de velhos achismos ecoados por meio de um grito falido a bradar “até que a morte os separe”. A eternização da relação não poderá jamais adjetivar a plenitude de um amor. O amor se transforma e pode, dependendo de inúmeros fatores, percorrer pelos campos elísios dos diversos tipos de amabilidade. Quando nos apoderamos do outro cerceamos sua liberdade. Investidos de falsas certezas narcísicas nos sentimos onipotentes. É nesse momento que abdicamos da fase de enamoramento. Sentimos que o outro já nos pertence e não precisamos mais nos esforçar para manter acesa a centelha do fogo da conquista. Reafirmo, porém, que a certeza de que o outro nos pertence viabiliza a morte do desejo e quando menos esperamos nos identificamos como amigos. Haverá problema nisso? Certamente não. Quando disseram que seria eterno não estavam restringindo a plenitude do amor somente ao desejo. Não, jamais. O desejo por si só é pobre para predicar esse sentimento pleno que dá luz a tudo. Deixar o outro trilhar seu próprio caminho é imperativo ético; é garantir-lhe o direito irrevogável à liberdade; é não se sobrepor a sua individualidade; é fazer valer um eu te amo em sua mais sublime essência. Ah! O amor! Como é difícil amar! Como é difícil nos entregarmos ao outro sem renunciar a nós mesmos! Como não nos perdermos nessa tempestade de areia?
Penso a vida de forma mais simplificada. Para isso precisei quebrar um conjunto de crenças e ressignificar todo o meu repertório cultural. Traçar um plano teórico e ao mesmo tempo sofisticado a ponto de problematizar as questões que nos chegam. Isso muitas vezes dói; pensar é transgredir regras. Acredito que inicialmente seja necessário renunciarmos a nós mesmos. Se quisermos crescer ao lado de alguém, temos que pensar em nos melhorar. É preciso tratar o eu interior, nosso ego em desalinho, que se autodenomina melhor sabotando nosso potencial de convivência. A próxima medida a ser feita é termos em mente que acima do amor eros é imprescindível mantermos o amor philia. O ser amado jamais poderá ser minimizado a um simples objeto de desejo. Ele é, acima de tudo, nosso irmão em humanidade e merece todo nosso respeito e reverência. O ser que compartilha conosco o caminhar traz traços do divino que habita em nós e jamais poderemos nos esquecer disso. É essa mentalidade desperta que garantirá a saúde dos relacionamentos e nos livrará de pensamentos egóicos. O próximo passo é construirmos uma relação onde os dois parceiros tenham certeza da temporariedade dos acontecimentos da vida. Todo relacionamento afetivo é uma escola de sentimentos e como todo educandário, apresenta em seu conteúdo diversas seriações e experiências. O amor maduro transforma as consciências, respeitando as individualidades. Em essência, estamos aqui para aprendermos a nos relacionar. O amor prudente vê na felicidade do outro, a própria felicidade. É esse amor incondicional que os gregos chamavam de ágape e que Jesus muito bem exemplificou. E como viver esse amor verdadeiro, libertador? Não há outra estrada se não a do autoconhecimento. Não basta entendermos, é preciso que elaboremos um significado e essa significação é o que nos faz amantes e seres desejantes.
Em O Banquete, diálogo platônico escrito por volta do ano 380 a.C, encontraremos uma série de discursos sobre a natureza e a qualidade do amor (eros). Nele, Fedro recorrendo à autoridade de Hesíodo, dirá que o amor é dos deuses mais antigos, que sequer possui genitores e que é, para nós, a causa dos maiores bens, pois sem ele, não há com se produzir grandes e belas obras. Talvez essa tenha sido a forma poética de falar que o amor muitas vezes assemelha-se a uma força indomável e, talvez, jamais desbravemos suas fronteiras. Mas prefiro pensar o amor como sendo uma alquimia divina manifesta em tudo e que sua sacralidade será proporcional ao esforço que fazemos para construir relacionamentos mais saudáveis, capazes de acolher o outro em toda sua integralidade e aspectos de seu ser.
Ab imo pectore!
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