Por Jerri Almeida
Allan Kardec foi sempre muito cuidadoso na preservação dos médiuns com os quais manteve contato, e que colaboraram em suas investigações. Poucas são as citações ou referências aos nomes desses médiuns no conjunto de sua obra. Parece evidente, que Kardec se preocupava muito mais com o conteúdo das informações e das ideias apresentadas do que, propriamente, com os médiuns e Espíritos que as comunicavam.
Essa precaução era própria de um investigador sério. Sabia ele, certamente, dos inconvenientes de projeção dos médiuns e dos efeitos que isso poderia gerar. Enfatizou, nesse sentido, dois efeitos: o imaginário do “privilégio da verdade” e o “orgulho” daí decorrente.
“O orgulho, nos médiuns, traduz-se por sinais inequívocos, a cujo respeito tanto mais necessário é se insista, quanto constitui uma das causas mais fortes de suspeição, no tocante à veracidade de suas comunicações. Começa por uma confiança cega nessas mesmas comunicações e na infalibilidade do Espírito que lhes dá. Daí um certo desdém por tudo o que não venha deles: é que julgam ter o privilégio da verdade.” [1]
A transmutação cultural do Espiritismo da França para o Brasil, ainda no final do século 19, e ao longo do século 20, exigiu um processo adaptativo à nova ambiência. Uma doutrina nascida no contexto cultural europeu, com suas características sócio-históricas e mentais, fortemente influenciadas pelo Racionalismo, Iluminismo, Evolucionismo e pelo positivismo, não teria o mesmo entendimento no contexto brasileiro pós-colonial, de uma sociedade fortemente hierarquizada, de constituição mental predominantemente religiosa, de imaginário salvacionista, católica, com seus santos e representações de verdade e poder.
O resultado disto é que o Espiritismo no Brasil assumiu um processo de aculturamento para poder sobreviver numa sociedade muito diferente da francesa. Virou um “Espiritismo brasileiro”. [2] A criação da Federação Espírita Brasileira e a institucionalização do movimento espírita no Brasil, marcadamente religioso, roustainguista, mudou, diametralmente, o tipo de relação que Kardec tinha com os médiuns.
O aparecimento do mineiro Francisco Candido Xavier na cena espírita brasileira, com sua enorme produção mediúnica voltada ao grande público, potencializou o mercado editorial de livros espíritas no Brasil, tornando-o um médium muito conhecido e reconhecido, especialmente nas camadas mais populares. Programas de televisão como o “pinga fogo” onde o médium participava com certa regularidade, atraia enorme audiência. Sabidamente, Chico Xavier, por sua modéstia, colocava sempre na autoria dos Espíritos, as informações e argumentos com os quais discutia os desafios humanos. O médium, agora famoso (não que o desejasse, é importante ressaltar), era o tradutor das verdades trazidas pelos seus interlocutores espirituais, “sempre certeiros”.
Segundo Sandra Jacqueline Stoll, professora de Antropologia da UFRJ, em seu livro: “Espiritismo à brasileira”, Chico Xavier distanciou o Espiritismo de sua essência científica e filosófica, impressa por Kardec, aproximando-o do catolicismo, em parte, através de sua representação pessoal de “santidade cristã”, voltado ao um ethos religioso. A vida do médium foi um exemplo de “vida monástica”, de renúncia à sexualidade, ao casamento e aos bens materiais. O que seria, também, de certa forma, seguido por Divaldo e Raul Teixeira.
Na esteira de um cenário propício aos médiuns surgiu o baiano Divaldo P. Franco, com suas características próprias, logo mostrando-se um excelente orador. Voltado, assim como Chico Xavier, para questões assistenciais, iniciou uma obra que se tornaria conhecida e respeitada mundialmente: A Mansão do Caminho, em Salvador. Viajou pelo Brasil inteiro e visitou muitos países “falando em nome da Doutrina Espírita”, em nome de sua “mentora” ou, talvez mais correto, em seu nome pessoal. Ambos, Chico e Divaldo, acolhidos e “adotados” ideologicamente pela Federação Espírita Brasileira, tornaram-se referências e, mais que isso, verdadeiras “autoridades” em Espiritismo no mundo. Suas obras mediúnicas foram sendo aceitas, publicadas e traduzidas, sem nenhum tipo de análise mais criteriosa, tornando-se, inclusive, “obras complementares” as de Kardec.
Assim, o século 20, foi – pretensamente – o período dos “grandes médiuns”: Chico, Divaldo, Gasparetto, Raul Teixeira, dentre outros, talvez menos relevantes na cena brasileira.
Ao contrário do que preconizava Allan Kardec, no Brasil, os médiuns haviam subvertido o anonimato, tornando-se autoridades inquestionáveis em matéria de Espiritismo, com todo o apoio da FEB e de outras instituições. Não havia, no meio espírita tradicional, espaços para qualquer discussão crítica ao que era produzido ou dito por esses médiuns, pois eles eram, claro, pessoas “especiais, iluminadas, missionários...”.
No entanto, o século 21 iniciou com a morte do médium mineiro. Não houve substituto, embora muitos desejassem o posto. Na madrugada do dia 15 de novembro de 2011, durante um voo do Rio de Janeiro para Nova York, onde faria mais um de seus roteiros de palestras no exterior, o médium Raul Teixeira sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC), que o impossibilitou, de forma geral, de manter sua rotina de viagens, psicografias, conferências e sua presença quase obrigatória nos congressos espíritas. Raul, era, e é, um ser humano como qualquer outro.
Já, Divaldo P. Franco, com idade avançada, nos últimos tempos está no centro de muitas polêmicas políticas. Falando de “tudo” e de muitos assuntos que não domina. Com pretensa autoridade, o referido médium vem maculando sua biografia de “humanista” ao defender em suas falas a extrema direita, nazifascista brasileira e os vândalos, golpistas, que atacaram e depredaram os prédios dos poderes da República no dia 08 de janeiro de 2023. Declínio evidente!
Portanto, o período ufanista dos chamados “grandes médiuns” já passou. O Espiritismo volta, agora, para suas bases democráticas de produção do conhecimento, liberto do monopólio e da dependência dos intermediários, sacralizados, que ultrapassaram em muito os limites de sua função. Médiuns não são representantes da filosofia espírita nem, necessariamente, são portadores de verdades inquestionáveis. O estrelato mediúnico acabou, essa geração passou! Para um segmento dos espíritas que necessitam de médiuns para lhes dizer o que devem fazer, esse fato é uma lástima! Estão órfãos!
Para os espíritas que estudam o conjunto da obra kardequiana, que são livres pensadores, que buscam o conhecimento, respeitando os fundamentos e princípios da filosofia espírita, mas de forma autônoma, racional e progressista, o fim da hegemonia dos “médiuns celebridades” é um contexto ingente e profícuo de resgate do pensamento original de Allan Kardec e de redemocratização do saber.
Notas
[1] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Cap. XX, Item 228
[2] Sobre o assunto, sugiro leitura dos livros: "Ponto Final. O reencontro do espiritismo com Allan Kardec", do pesquisador e escritor espírita Wilson Garcia; e "Espiritismo à brasileira", de Sandra Jacqueline Stoll, professora de Antropologia da UFRJ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário