Por Marcelo Henrique
“Por mais adiantado seja o ser encarnado neste planeta, ele não irá experimentar as condições estimadas por Jesus em suas parábolas e pregações.”
Ao assumir a condição de protagonista na criação da “Doutrina dos Espíritos”, a partir do estabelecimento de um duradouro diálogo com as Inteligências Invisíveis, o Professor Rivail foi descobrindo um horizonte até então desconhecido da Humanidade, tratado como monopólio de crenças e religiões. Pouco a pouco, foi compondo obras específicas, cada qual com seu escopo próprio, assim como instituiu um importante veículo de divulgação e de maturação das novas ideias, a Revue Spirite – Revista de Estudos Psicológicos. Ao final, 32 obras formaram o acervo de Allan Kardec, no período de 1857-1869.
Um dos livros mais “populares” do Espiritismo é “O evangelho segundo o Espiritismo” (OESE), editado em 1864, em cujo frontispício se pode ler o objetivo da publicação: “Contendo a explicação dos ensinamentos morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida”. Fato é que este livro – o mais vendido entre os que compõem a literatura espírita – publicado por um sem número de editoras, no Brasil e em outros países, acaba figurando como o “novo testamento” dos espíritas, sem qualquer demérito ou prejuízo em face disso. Muito pelo contrário.
Mesmo não sendo, propriamente, a Doutrina Espírita uma religião, como todas as demais que se baseiam nos feitos, fatos, atos e pregações do Homem de Nazaré – exatamente como descreveu Kardec no célebre discurso proferido em 1º de novembro de 1868, incluso na edição de dezembro daquele ano da Revue, sob o título “Sessão anual comemorativa dos mortos” – é natural que as pessoas em face de suas vivências anteriores, no seio das religiões, adotem-na como tal e confiram destacada importância a tal livro.
Tenho pontuado, em palestras e estudos, presenciais ou virtuais, que o Espiritismo não valida o conteúdo integral contido nos quatro evangelhos canônicos (João, Lucas, Marcos e Mateus), havendo, apenas, a reprodução nas obras espíritas – e em especial no citado “Evangelho espírita”, as passagens que guardem correspondência e fidelidade com os pressupostos espíritas. Tudo o mais pertence ao contexto do folclore ou da liturgia religiosa. São elementos introduzidos nos textos “bíblicos”, para fundamentar os dogmas, sacramentos e as teorias professadas pelas religiões, a partir da Igreja Católica.
Assim sendo, caso alguém se disponha a ler o “Novo Testamento”, que é, basicamente, o conteúdo dos quatro evangelhos mencionados, acrescido dos Atos dos Apóstolos e demais epístolas (cartas) escritas por pessoas ligadas ao Cristianismo, historicamente, provavelmente não encontrará correspondência e aplicabilidade em relação à chamada “teoria espírita”. O que é relevante – e, neste sentido, parece guardar sinergia com os acontecimentos da vida do Sublime Carpinteiro, receberam, nas obras assinadas por Kardec, abordagem e consideração. Tudo o mais, em verdade, pertence ao núcleo da retórica religiosa e do âmbito da crença de cada uma das religiões erigidas a partir do Cristianismo primitivo e da edição originária do “Novo Testamento” (católica, inauguralmente).
O OESE é, assim, um livro utópico, em essência. Isto considerando os parâmetros existenciais dos seres que, desde dois mil anos atrás, constroem suas experiências físicas (encarnatórias) sobre este orbe. A Sociedade e a Justiça cunhadas por Yeshua bar Yosef (Jesus filho de José) são ideais e correspondem à realidade vigente em planos mais sutis do que o nosso, e que a Doutrina Espírita classifica no último estágio de progresso espiritual, o dos Mundos Celestes ou Divinos, o quinto dos degraus a subir para alcançar a condição de Puros Espíritos. As exortações – e, também, as realizações do Rabi –, então, projetam o futuro (das individualidades e das coletividades planetárias). Por mais adiantado seja o ser encarnado neste planeta, ele não irá experimentar as condições estimadas por Jesus em suas parábolas e pregações.
A utopia, portanto, é uma condição impossível de materialização no atual estágio (Provas e Expiações), assim como também não será realidade nos dois próximos (Mundos de Regeneração e Ditosos ou Felizes), embora, a cada avanço, algumas das situações vivenciadas e das organizações sociais já irão concretizar, parcialmente, os objetivos e as propostas trazidas pelo Nazareno. Em OESE figura, então, a chamada didática de Jesus para a Humanidade terrena – e para as humanidades futuras.
Ao folhear, ler, estudar e reler, tantas vezes quanto necessárias, as passagens contidas em OESE, o estudioso espírita irá perceber que o livro é uma preparação para o porvir. Contém, em si, propostas para o “homem de bem”, que não é um ser privilegiado, não pertence a uma categoria especial que teria sido assim criada por Deus, mas, do contrário, representa o resultado do esforço permanente e sucessivo da individualidade em “lutar contra suas más inclinações”, alcançando, pelo suor do seu rosto e do trabalho resultante dos seus próprios esforços, a “transformação moral” – expressões que estão contidas, sabidamente, no Capítulo XVII, item 4, de OESE, o qual tem o sugestivo título de “Sede Perfeitos”.
É, assim, uma UTOPIA POSSÍVEL, porque há de se concretizar num futuro – hoje, longínquo – considerada a trilha de progresso que cada um, de per si e conforme sua vontade, irá percorrer, sendo, pois, variável o tempo em que uns e outros irão permanecer nestes ou naqueles degraus (ou estágios evolutivos). Não há pressa, a não ser aquela que resulta do interesse, da boa vontade e dos propósitos da criatura em tornar-se melhor, a cada dia.
Em OESE, há um trecho que considero essencial para este nosso debate, e que está contido logo no Capítulo I, da obra em tela, no item 8. Vamos reproduzir o mesmo: “Após uma elaboração que durou mais de dezoito séculos, chega ela à sua plena realização e vai marcar uma nova era na vida da Humanidade. Fáceis são de prever as consequências: acarretará para as relações sociais inevitáveis modificações, às quais ninguém terá força para se opor, porque elas estão nos desígnios de Deus e derivam da lei do progresso, que é lei de Deus”.
Note que esta afirmativa, bastante alvissareira, otimista e de muito bom ânimo, está contida em uma obra que foi publicada por Kardec em 1864, ou seja, cento e cinquenta e cinco anos atrás, e previu modificações nas relações sociais e uma nova era para a Humanidade. Notório é que tal circunstância está, ainda, longe de se materializar, sendo verificáveis, a olho nu, as condições ainda inóspitas e rudimentares nas relações humanas, sobretudo pela prática de atrocidades, crimes bárbaros e atos de barbárie e selvageria em praticamente todos os quadrantes do planeta. Não obstante, podem ser visualizadas, também, iniciativas nobres, atos de pacificação e alguns avanços em determinadas áreas sociais. Em outras palavras, utilizando-nos de jargão conhecido e, até, bastante comum no chamado “movimento espírita”, bem e mal convivem lado a lado nas rotinas do cotidiano planetário. Isto dentro da tradução genuinamente espírita de que “bem” e “mal” não existem de per si, mas devem ser encarados em termos dos resultados das ações e das omissões humanas, que podem ser positivos (benéficos) ou negativos (maléficos).
Mas, olhando para o Brasil e para o mundo, qualquer pessoa de bom senso, espírita sensato, estudioso, está decepcionado com o que tem feito os homens com a experiência encarnatória, o que nos posiciona bem distantes deste projeto contido em OESE
O que podemos dizer, então, e inclusive, dos próprios espíritas diante de tal diretriz…
O progresso é, de fato, uma Lei da Natureza – vide, a propósito, a terceira parte de “O livro dos espíritos”, onde estão consignadas as Dez Leis Morais (Espirituais) aplicáveis a todos os Espíritos, em todos os degraus evolutivos e em todos os mundos habitados – e segue seu curso, inexoravelmente. Em dois âmbitos o Progresso se verifica: no individual, a partir da conquista de valores espirituais que credenciam o Espírito a novas (e melhores) experiências, inclusive com a transmutação do habitat, deste para outro orbe; e, no coletivo, como o somatório dos avanços dos indivíduos, na construção de Sociedades mais ajustadas, em que a prática do bem e a justiça social já são realidade.
A proposta espiritista figura, deste modo, como uma bússola de orientação aos “navegantes” (encarnados) para a edificação de ambientes mais favoráveis, melhorando o planeta que nos serve de morada e, adiante, também fazendo progredir os outros, mais adiantados, em que estivermos sendo direcionados, como resultado de nossos próprios adiantamentos. O mapa já é de nosso conhecimento, conforme se depreende da explicação dada pelos Espíritos Superiores a Kardec, no tocante à constituição de cada um dos mundos habitados (as “muitas moradas na Casa do Pai”, na poesia de Yeshua), e figura em “O livro dos Espíritos”, parte primeira, Capítulo III, item 55 e seguintes. A embarcação é o envoltório físico que nos serve de morada e que vai se depurando à medida do próprio progresso espiritual. O capitão da nau é o Espírito, o ser inteligente da criação, que define as rotas e o momento de enfrentar as águas. Estas, por fim, são cada uma das experiências encarnatórias, no oceano da vida (existência físico-espiritual).
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