Por Doris Gandres
José Herculano Pires, escritor e filósofo espírita bastante conhecido no movimento e no meio espírita, no prefácio de seu livro Curso Dinâmico do Espiritismo, afirma com muito critério que “o Espiritismo não apela para explicações místicas. É com os pés na realidade que o Espiritismo avança em todos os sentidos”.
Todavia, lamentavelmente, temos visto já há algum tempo, de forma até bastante acentuada, espíritas enveredarem cada vez mais no campo do misticismo, do endeusamento de espíritos, médiuns, dirigentes e outros tantos, recaindo na fé cega, à beira do dogmatismo, do culto a mitos idealizados pelo gosto ao comodismo e ao salvacionismo ilusório sem esforço individual; com isso, afastam-se cada vez mais do aspecto científico e filosófico, base em que inicialmente apoiou-se a doutrina e de onde despontaram os princípios morais – o que Allan Kardec ressaltou tanto no início de O Que é o Espiritismo como nas Conclusões (item VII) do Livro dos Espíritos.
A terceira parte do Livro dos Espíritos, criteriosamente designada de As Leis Morais, apresenta de forma clara e didática praticamente todas as situações que atingem a vida terrena, as condições da realidade que aqui se vivencia, versando sobre temas como adoração, progresso, sociedade, igualdade, liberdade, destruição, trabalho, reprodução, conservação, justiça, amor e caridade. Não é difícil consequentemente perceber-se que tais postulados aplicam-se nitidamente a tudo que abrange, e em todos os sentidos, a realidade da nossa vida material, social e de relação entre uns e outros.
No entanto, particularmente o movimento institucionalizado, por meio de suas organizações de maior ou menor porte, com maior ou menor destaque no meio espírita em geral, vem pugnando para ressuscitar nas criaturas o sentimento de dependência irrestrita, o religiosismo piegas, a idealização de mitos, a sensação de poder delegar responsabilidades, a sensação de que o escopo principal da doutrina trata somente da vida no mundo extrafísico – logicamente que esse também é um dos interesses do ensinamento espiritista, porém não podemos esquecer que é sobretudo enquanto aqui, vivendo com “os pés na realidade” da vida terrena, que preparamos nossas condições futuras, aliás tanto no além quanto aqui quando de volta...
Desse modo, mediante um disfarçado autoritarismo, uma disfarçada arbitrariedade, inclusive através da distribuição de literatura, quer sejam livros e/ou apostilas, onde os princípios espíritas ficam perdidos em meio ao misticismo roustainguista, crescem essas instituições em poder e domínio sobre as criaturas, ofuscando-lhes o raciocínio e a inteligência com o brilho de nomes venerados e eventos suntuosos, congressos onde muito se fala, se canta, mas nada se diz quanto a esclarecimento e muito menos quanto a estudo e avaliação do que acontece no movimento.
E é assim, apesar do Espiritismo incentivar a todo tempo o uso da razão e do bom senso, a análise séria e conscienciosa dele mesmo e de tudo que em seu nome seja apresentado, tanto de encarnados quanto de desencarnados, não importando quão ilustre seja o nome, que continuamos nós, espíritas, em boa parte, cultivando um comportamento aleatório à realidade em que vivemos e à qual ele, o Espiritismo, se destina, escorados na esperança ilusória de um “nosso lar” no mundo espiritual, esquecidos de que necessário, premente, urgente, é construirmos aqui um mundo onde se possa viver sem essa vergonhosa desigualdade social, obra do homem e não de Deus (LE 806), essa terrível injustiça discriminatória.
E se achamos que distribuir sacolas básicas, algumas roupas e cobertores, alguns enxovais de bebê, podem resolver a questão, precisamos usar a capacidade de pensar e raciocinar de que já dispomos para perceber que isso apenas mitiga naquele momento a carência profunda daquelas criaturas, sem considerar muitas vezes a carência de autoestima e respeito próprio.
Finalizando, lembrei-me das palavras de Anália Franco: “a verdadeira caridade não é apenas acolher o desprotegido, mas proporcionar-lhe a capacidade de se libertar.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário