domingo, 25 de junho de 2023

ARES DE RENOVAÇÃO

 

 

Por Jerri Almeida

Durante a pandemia – mas é preciso observar que esse é um fenômeno que vem se expandindo e, portanto, é bem anterior a ela – houve um visível crescimento dos coletivos espíritas [1] na internet. Grupos não necessariamente institucionalizados ganharam visibilidade no período de isolamento social, entre 2019-2020, produzindo Lives com qualidade e profundidade de conteúdos, preocupados em analisar não apenas aspectos metafísicos mas, também, questões sociais, políticas e culturais à luz da filosofia espírita.

Dessa forma, muitos grupos, associações e coletivos espíritas passaram a contribuir nos meios digitais com o debate sobre uma sociedade mais humana e inclusiva, pois o espiritismo não deve ficar alheio aos grandes desafios de nossa época. Não deveríamos reduzi-lo, exclusivamente, ao campo da metafísica, das discussões sobre imortalidade da alma, reencarnação, comunicabilidade com os espíritos, por exemplo. Obviamente, estes assuntos são substanciais e fazem parte indiscutível da natureza, princípios e da própria epistemologia espírita. A partir destas perspectivas fundamentais é preciso ir além, estabelecendo diálogos transversais e multidisciplinar com outras áreas do conhecimento.

É perceptível um crescimento talvez nunca antes visto com tanta intensidade, de espíritas livre pensadores, muitos laicos, progressistas, que romperam com o movimento espírita tradicional, federativo, religioso, retrógrado. Há uma busca pela superação dos ícones sagrados, do dogmatismo febiano, do igrejismo e das verdades absolutas.

Pesquisadores espíritas e livres-pensadores, têm contribuído para fomentar e expandir o debate sobre inúmeros temas, seja discutindo, entre outros, os fundamentos para uma teoria social espírita (Lindemberg, Luiz Gustavo, Signates), trazendo Kardec para o século 21 (Dora Incontri), apresentando elementos para uma teoria espírita de gênero (Alexandre Junior), o certo é que o espiritismo no Brasil retoma uma perspectiva dialética, de resgate dos escritos de Kardec sem, no entanto, sacralizá-los ou tê-los como critério único de verdade.

Bastaria atentarmos para os próprios textos de Kardec para percebermos que o espiritismo, por sua natureza progressista, livre-pensadora, racionalista, humanista, não pretende ser o portador exclusivo da verdade. Trata-se, portanto, de uma filosofia que, pelo seu dinamismo, pode e deve dialogar com outros saberes. Cabe aos estudiosos, ou aos adeptos desta doutrina, apresentar suas contribuições para o debate sobre uma visão profunda do ser humano, da sociedade e do progresso, abrindo-se, ao mesmo tempo, para os contributos dos conhecimentos historicamente elaborados. 

Temerosos ou puristas, os espíritas tradicionais argumentam que é preciso manter a “pureza doutrinária” do espiritismo, fechando-o – ao contrário do que pensava e escreveu Kardec – em verdades prontas, reveladas e totalizantes. Vale, aqui, lembrarmos o manifesto de Nuccio Ordine:

“Nenhuma religião e nenhuma filosofia poderão jamais reivindicar a posse de uma verdade absoluta, válida para todos os seres humanos. Crer que se possui uma só e única verdade significa sentir-se no dever de a impor, também, à força, para o bem da humanidade. O dogmatismo produz intolerância em todos os campos do saber: no plano ético, religioso, político, filosófico e científico.” [2]

E, segue em sua lúcida observação:

“Desse modo, quem está certo de possuir a verdade não a precisa procurar, não sente a necessidade de dialogar, de escutar o outro, de se confrontar de modo autêntico com a pluralidade e com o múltiplo. Somente quem ama a verdade a procura continuamente. E é por isso que a dúvida não é inimiga da verdade, mas permanente estímulo para a sua busca.” [3]

Nenhuma ciência, filosofia ou qualquer outra área do conhecimento basta-se a si mesma. No mundo cada vez mais complexo em que vivemos, o conhecimento se produz através de interações e de trocas. O diálogo com outros saberes não prejudicará, nem mesmo porá riscos aos princípios e fundamentos do espiritismo. Pelo contrário, tornará o pensamento espírita sempre atualizado, consentâneo aos novos tempos e com os dilemas de cada época.

 

 

NOTAS

[1] IFEHP (Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires), Ágora Espírita, ECK (Grupo Espiritismo com Kardec), Coletivo Maria Felipa, CEPABrasil (Associação Espírita Internacional), Fronteiras do Pensamento Espírita, para citar apenas alguns.

[2] ORDINE, Nuccio. A utilidade do Inútil. Um manifesto. p. 173.

[3] Idem.

4 comentários:

  1. Boas reflexões; esperemos q esses "ares de renovação" venham a atingir o meio espírita conservador e comodista. Doris Madeira Gandres.

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  2. Importantes reflexões! O conhecimento é dinâmico e ativo. Ninguém pode detê-lo sem a abertura para o debate e para novas pesquisas.
    Na sua codificação, o espiritismo recebeu contribuições as mais variadas e isso não foi motivo de descrença. Sigamos estudando e enriquecendo os seres humanos de conhecimento, pois isso é fé raciocinada.

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  3. Bom texto! É pena que o pensamento crítico-reflexivo não faça parte do cotidiano da maiorria dos brasileiros, situação que tem impacto direto no saber-fazer espírita em nosso país.

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  4. devemos refletir sobre o real sentido da filosofia; espero o dia no qual surgirão novas pesquisas, como as fez Kardec! Médiuns, Espíritos, critérios tais que poderão produzir novas respostas, de acordo com os novos estilos de convivência e vivência dos seres encarnados.

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