Por Marcelo Henrique
Antes Mesmo que o Galo Cante
Presente na construção histórico-religiosa do Cristianismo, ainda que se considere o componente mítico e místico que envolve a escolha dos Evangelhos Canônicos e a delimitação de oficialidade dos textos neles contidos, o célebre diálogo entre Jesus e Pedro, ecoa pelo curso dos tempos e chega até os nossos dias.
Do texto contido em Mateus (26: 34), o Rabi teria dito ao discípulo amado: “Com certeza te asseguro que, ainda nesta noite, antes mesmo que o galo cante, três vezes tu me negarás”.
Consta que o discípulo ficou irritadiço com a admoestação do Mestre, e rebateu-lhe dizendo que nunca lhe negaria, e que morreria por ele – ou pela causa que ele representava.
E, na sequência do capítulo evangélico, a “profecia” do Galileu se cumpriu e o pescador realmente, em três situações, informou que não conhecia aquele homem. E ao final, após a terceira negativa, ouviu ao longe o galo se pronunciar, e caiu em choro copioso.
Brasil, 2018. E o Galo Continua a Cantar…
Tem-se epigrafado na Introdução de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, que a Doutrina Espírita teve como antecessora o conjunto dos ensinos de Jesus de Nazaré e que, estes, por sua vez, guardariam sintonia com a doutrina de Sócrates e Platão. Um elo filosófico-moral, assim, liga Espiritismo-Cristianismo-Filosofia Grega, demonstrando que a Humanidade tem recebido, de tempos em tempos, a mensagem valorosa acerca das Leis Espirituais ou Divinas, que os homens lutam para compreender e aplicar, em suas vidas.
Para os espíritas, a figura ímpar e fundamental de Allan Kardec é referência, em razão do método, da sistemática, da produção literária e dos ensinos que legou ao “movimento espírita” de sua época e das subsequentes. Não há como falar-se em Espiritismo sem Kardec e, mesmo que se validem, aqui ou ali, outras informações “reveladas” aos homens por meio do intercâmbio mediúnico – mesma “ferramenta” de que se valeu o Professor Francês para a composição do edifício espiritista – é fundamental valorizar, respeitar e defender a sua obra diante de qualquer ameaça, tentativa ou lesão.
Pesquisas recentes, divulgadas de modo oficial em território brasileiro neste célebre mês de março de 2018, apontam para uma lamentável e grave situação fática: justamente a última obra de Allan Kardec, intitulada “A Gênese” – cujo sesquicentenário se comemora, justamente, no ano em curso – foi alterada em sua essência (adulterada, no jargão de conotação jurídica), com uma quinta (e, até então, definitiva) edição, publicada após o desencarne do Codificador, cuja redação é flagrantemente diferente, em muitos itens e capítulos, às quatro anteriores, idênticas, lançadas e publicadas por Rivail, enquanto em vida.
Kardec era Meticuloso
Kardec era meticuloso em seu trabalho. E valia-se de um formidável instrumento para apresentar aos espíritas de todo mundo, seus passos, suas iniciativas, a continuidade de suas pesquisas e atividades em nome do Espiritismo. Esse instrumento era a “Revue Spirite” (Revista Espírita), o seu magnífico laboratório, no cadinho do qual realizava o exame, a aferição e a separação de textos que continuavam a aflorar, pela veia psicográfica, para corrigir, ampliar ou complementar os textos que já constavam de suas principais obras. Na Revista, assim, Kardec dava notícias de suas intenções e realizações. Pois nela não consta nenhum destaque – o que seria de se esperar – acerca de uma “revisão” de uma obra essencial como era “A Gênese – Os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, sobretudo porque, como dito antes, quatro republicações haviam sido feitas mantendo-se “in totum” o texto consagrado na primeira delas.
Aqueles que se debruçam, num estudo comparativo, ainda no idioma original, o francês, entre a primeira (ou qualquer uma das demais, que lhe seguiram, isto é, segunda, terceira e quarta, pois são idênticas) e a quinta edição percebem supressões, acréscimos e modificações formais no pensamento de Kardec.
Mas, aí, uma pergunta poderia ser entoada: – Kardec nunca mudou de opinião? Kardec sempre teve, de 1855, quando começou a apreciar as “mesas girantes” e, depois, quando iniciou o estudo sistemático das comunicações que lhe chegaram às mãos, até 1869, quando ele desencarna, a “mesma opinião formada sobre tudo”, para lembrar um notável compositor da nossa era? Evidentemente que não! A Doutrina dos Espíritos nunca foi um produto pronto e acabado e há, inclusive, um relato da própria lavra de Kardec de que um espírito provocou ruídos em seu apartamento, justamente quando ele estava trabalhando em um texto e, no dia seguinte, no contato com a referida inteligência desencarnada, ela o informou que assim agiu porque o seu trabalho precisaria ser corrigido, pois ele havia cometido um erro crasso.
O continuum das pesquisas e do trabalho proporcionado pelo Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE), método que ele compilou e desenvolveu para validar (ou não) as mensagens mediúnicas e para, de tempos em tempos, com novas observações, alterar informações na Codificação, é prova inconteste de que Kardec, vez por outra, alterou a sua forma de entendimento e expressão sobre vários assuntos.
“A Gênese”
Mas não é o caso de “A Gênese”. O conjunto das alterações procedidas nesta obra, culminaram em desnaturá-la quase que totalmente, a ponto de introduzir conceitos e teorias que são incompatíveis com o corpo doutrinário, a espinha dorsal do Espiritismo. Que gravita em torno dos chamados princípios básicos espiritistas, mas que, também, decorre de uma completa e sistemática interpretação de todo o sistema filosófico espírita.
Ainda que não se busque, a partir das pesquisas realizadas e que apontam para a adulteração da obra em comento, a AUTORIA e a “responsabilidade” daqueles que assim procederam, nem se pretenda – até pelas questões afetas à judicialidade e à promoção de medidas judiciais a esse respeito – o objetivo único, essencial e legítimo é a proteção, não só do chamado direito autoral (personalístico em relação à escrita, composição e edição-publicação de uma obra literária), como da memória íntegra daquele célebre pesquisador, o primeiro espírita do mundo, Allan Kardec.
Muitas das alterações convergem para a adoção de teorias que o próprio Rivail, a seu tempo, no contato com elas, tratou de descartar e afastar do conteúdo doutrinário, como as que foram apresentadas pelo advogado conterrâneo e contemporâneo de Kardec, Jean-Baptiste Roustaing (ou J.-B. Roustaing), em seu livro de quatro volumes intitulado “Os quatro evangelhos”, obra, aliás, que trazia o pedante e pretensioso subtítulo “A revelação da revelação”, como uma forma dantesca de complementação (e alteração) do conteúdo espírita que estava, ainda, em produção em face das pesquisas (e publicações) do Codificador.
Note-se que esta “influência” das teses rustenistas, ainda na época de Kardec, cujos elementos foram adotados por alguns dos que acompanhavam de perto o trabalho e as atividades daquele, inclusive no seio da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), o primeiro centro espírita do mundo, teve, ao tempo de Rivail e conforme a sua forma plural, humanista e livre-pensadora, tolerância e compreensão, porque ele jamais proibiu quem quer que fosse ou vetou qualquer debate envolvendo as teses, sabidamente antagônicas. Do contrário, sabia ele que alguns adeptos espiritistas e colaboradores da SPEE eram, por sua formação cultural, religiosa e espiritual, ainda simpáticos às teorias de Roustaing – e, francamente, em maior ênfase, à ideia de que Jesus de Nazaré não havia tido uma encarnação similar à nossa, tendo uma “existência fluídica”, elemento que é, para o conteúdo contido na Doutrina dos Espíritos, matéria espúria e alienígena, incompatível, portanto.
Os rustenistas se espalharam pelo mundo e, notadamente, encontraram terreno propício, em solo brasileiro, para a divulgação e a construção do seu pensamento coletivo, tanto é que a própria Federação Espírita Brasileira – órgão que tem a feição de um modesto centro espírita, mas que aglutina, desde 1948 (em face do evento denominado “Pacto Áureo”), as entidades regionais (estaduais e distrital, no Brasil, em número de vinte e sete) – apresenta como “cláusula pétrea” (isto é, irreformável) de seu Estatuto, a difusão e o estudo das obras daquele advogado francês, ao lado das de Kardec. E, também, registre-se, de tempos em tempos, o presidente daquela instituição – que, também, preside o Conselho Federativo Nacional (CFN) da entidade, o que congrega as citadas entidades federativas regionais – também é de “formação” rustenista, ou seja, alguém que, além de se afiliar ao pensamento rivailiano, entende aceitáveis e válidas as teses contidas na citada obra.
O Cantar do Galo
O cantar do galo, neste nosso ensaio, é o momento em que vivemos. Não há mais como calar-se ou dar de ombros. O ruído portentoso da ave, assim, representa o grito de BASTA! Não é mais possível “conciliar” elementos tão díspares e contraditórios, como a dicotomia Kardec-Roustaing. É impossível dar guarida – seja pela “aceitação” da obra de J.-B., seja pela “oficialização” da quinta edição do livro em tela, o último da série magnífica edificada por Rivail – a teses que são totalmente incompatíveis com princípios e fundamentos espiritistas.
Caso você, como eu, só esteja tomando conhecimento de todo esse cenário há pouco tempo e, como espírita estudioso, já tenha por “n” vezes folheado, compulsado e estudado “A Gênese” com base na tradução até então conhecida e divulgada – e, frise-se, todas as editoras brasileiras, até hoje, desde a primeira publicação em território nacional e em nosso vernáculo se baseiam na dita quinta edição francesa – é hora de abandoná-la, descartá-la e substituí-la pela edição restaurada, que em poucos dias estará sendo comercializada em nosso país, assim como já acontece em outros onde o movimento não possui vinculação direta com a entidade maior do espiritismo brasileiro e que, ao tomarem ciência da ampla pesquisa realizada neste sentido, e que creditamos sua autoria à pesquisadora brasileira, Simoni Privato Goidanich, que muito honrou a memória do Codificador, já providenciaram edições restauradas, baseadas, não na quinta, mas na quarta (ou qualquer das anteriores), em absoluto respeito aos textos originais editados por Kardec.
Não é preciso, como Pedro, cair em choro convulsivo e desesperador, pelo acontecido. Como o discípulo que negou Jesus, os espíritas – sobretudo dirigentes e responsáveis por grandes instituições e pelas editoras espíritas brasileiras – também negaram Kardec.
O Galo Cantou…
E é hora de, com arrependimento sincero, com entusiasmo para o recomeço e com a sensação do dever cumprido, retomar o estudo desta importante peça da engrenagem kardequiana, afastando-a de toda e qualquer modificação proposital que a tenha desnaturado, em origem.
Por fim, ainda que não esperemos novas clarinadas daquela ave, adiantamos que estamos trabalhando, também, no acurado exame daquelas obras que tenham sido levadas a efeito, na forma de publicação, após o desencarne de Rivail (31 de março de 1869), considerando, principalmente, que os volumes da Revue de maio a dezembro deste derradeiro ano de vida do Codificador, não foram por ele supervisionados, já que o último fascículo que ele teria deixado, pronto, no prelo, foi o de abril de 1869, assim como o livro “Obras Póstumas” serão objeto de exame e aferição de seus conteúdos em comparação com o edifício da Doutrina dos Espíritos, contido nas demais obras que compõem a chamada Codificação.
Esse resgate é compromisso de todos os homens de bem, os verdadeiros espíritas, cuja definição está expressa com propriedade na obra do Professor Francês.
E que tenhamos coragem para sê-los!
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