Por Jerri Almeida
Allan Kardec, após publicar “O Espiritismo em sua mais simples expressão”, em 1862, dedicava-se a uma nova obra. Não comunicara a ninguém o que estava escrevendo [1], muito menos o objetivo do novo texto. O seu editor, Sr. Didier, só veio saber o título quando Kardec o enviou para impressão. A primeira edição foi publicada com o nome: “Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo”. Mas o título não soava bem, o que fez o editor experiente, sugerir mudança. Na segunda edição o título do livro é, então, modificado definitivamente para: “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.
Em sua introdução, Kardec comenta que os Evangelhos se dividem em cinco partes: as matérias comuns da vida do Cristo (!?); os milagres; as predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus dogmas; e os ensinos morais. Salienta que as quatro primeiras são objeto de dúvidas e controvérsias, mas os ensinos morais representam a essência do cristianismo, porquanto sobre eles não pairam dúvidas, pois: “Para os homens, em particular, constitui aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias da vida privada e da vida pública, o princípio básico de todas as relações sociais que se fundam na mais rigorosa justiça.” [2]
O que teria levado Allan Kardec a essa convicção?
Rivail não era um homem que facilmente se deixasse emocionar por assuntos meramente religiosos. Ao iniciar, em 1854, suas investigações sobre os fenômenos físicos que se proliferavam na França, na medida em que se defrontava, cada vez mais, com “inteligências humanas” interferindo no mundo físico, ele percebe que estava diante de algo mais profundo. A investigação dos fatos o levou ao desvelamento gradual do espírito, ser imortal e pluriexistencial, como potência da natureza, e das leis naturais e morais que regem sua relação com os homens. Desse amplo universo de questões que se abria diante de seus olhos, Kardec percebeu, desde logo, a necessidade da formulação de uma teoria explicativa para essa ampla fenomenologia.
Na medida em que inquiria os espíritos, avançando para o período dos fenômenos subjetivos da mediunidade, através de vários médiuns, em diversos locais, Kardec tem o ensejo de propor questões variadas, inquietantes, duvidosas, filosóficas, científicas e morais, para os espíritos responderem. Tanto as perguntas que fazia, quanto as respostas que recebia, eram examinadas, pensadas, racionalizadas e, na dúvida, submetidas a outros espíritos, através de outros médiuns, de diferentes lugares, com os quais mantinha contato.
Das respostas concordantes, aplicando o “crivo da razão”, Kardec chegou à sistematização e formulação da teoria espírita. Tratava-se de uma teoria baseada em fatos. Portanto, da investigação dos fatos, Kardec passa à formulação dos princípios filosóficos (precedente epistemológico) e das leis que regem essa ampla fenomenologia e suas consequências morais.
Interrogando e questionando os espíritos, por vezes, inúmeras considerações surgiam reportando-se aos ensinamentos morais de Jesus de Nazaré. Espíritos que quando viveram na Terra foram cristãos, tanto quanto aqueles que não o eram, enfatizavam agora, o desvencilhar das manifestações externas e dos dogmas, dos rituais pueris, para focar exclusivamente na essência moral dos ensinos.
Kardec compreendia, cada vez mais, que o conjunto dos fatos, das manifestações espirituais e da teoria delas decorrente, além de gerar uma filosofia espiritualista, capaz de oferecer explicações racionais para a natureza humana, o sentido da vida e da morte, o sofrimento e a felicidade, geravam consequências morais. É, certamente, neste momento, que a moral chamada por ele de “cristã” passa a ser examinada.
A publicação, em janeiro de 1864, de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, trouxe alguns problemas para o entendimento da filosofia espírita, destituída de adereços religiosos. Kardec, na minha percepção, cometeu dois equívocos ao escrever esta obra. O primeiro está logo no capítulo 1, ao situar o espiritismo como a “terceira revelação da lei de Deus”. Ele, que na introdução da referida obra, afirmava que Sócrates e Platão haviam sido precursores das ideias espíritas, preocupando-se em inserir o pensamento espírita no contexto da filosofia ocidental, logo em seguida, sugere que o espiritismo é a “terceira grande revelação de Deus”. Algo contraditório com o pensamento filosófico que não pauta suas reflexões em torno de “verdades finais”. O segundo problema, a meu ver, está no capítulo 6, intitulado “O cristo consolador”, onde afirma Kardec que o espiritismo é o “Consolador prometido por Jesus”. Esta questão confirma o primeiro capítulo, revestindo o pensamento espírita de uma concepção messiânica, derivada do cristianismo.
Parece, salvo engano, que essas ideias corrompem o próprio esforço inicial de Kardec, em distanciar o espiritismo de ser “uma nova religião em Paris”, da qual era, desde 1859, acusado pelos sacerdotes católicos. O que teria acontecido com Kardec? Teria sido empolgação, emoção ou ingenuidade exagerada? Talvez, nunca saberemos o que o levou, de fato, a publicar essa obra. Obra que, pelo projeto inicial, parecia ser uma análise filosófica dos ensinos morais de Jesus à luz da teoria espírita, mas que descambou para uma perspectiva muito mais religiosa e, até mesmo, dogmática.
Em função destes aspectos, a grande maioria dos espíritas fazem do Evangelho Segundo o Espiritismo o seu foco principal, todas as palestras e estudos giram quase que exclusivamente em torno desta obra. O problema é que quando isso é desconectado do conjunto das obras fundamentais, e de forma acrítica, abre-se espaço para sua sacralização, idealização e mitificação.
Penso que a terceira parte de O Livro dos Espíritos aborda temas morais com maior amplitude de reflexões e análises do que O Evangelho Segundo o Espiritismo. Quando lemos o capítulo 28 desta obra: “Coletânea de preces espíritas” – embora no capítulo anterior: “Pedi e obtereis”, ele ter explicado os mecanismos da prece a partir da “ciência espírita” – percebemos que Kardec não conseguiu se desvencilhar, em vários momentos, do imaginário mítico-religioso construído historicamente no ocidente.
O movimento espírita tornou-se um movimento religioso, por vezes, conservador, também em função da literalidade desses dois pontos que mencionei aqui, escritos por Kardec nessa obra.
É preciso seguir os conselhos de Rivail/Kardec, que em vários de seus escritos alertou para a necessidade de análise crítica de quaisquer textos/conteúdos. Portanto, também seus escritos devem ser objetos de análise crítica, evitando-se, assim, a sacralização de suas obras.
NOTAS
[1] KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Segunda Parte, “Imitação do Evangelho”
[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Abril de 1864. Biografia: Imitação do Evangelho.
Muito boas reflexões Jerry, concordo inteiramente. Doris Madeira Gandres
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