Por Jerri Almeida
Como qualquer pensador, Kardec precisa sofrer o impacto da análise contemporânea sobre seus escritos. O conhecimento é dinâmico. Assim como acontece com os textos de vários filósofos e escritores, a obra kardequiana precisa ser prospectada para contribuir com os desafios e angústias do mundo atual. A filosofia espírita, progressista, humanista, laica, é rica de possibilidades nesse sentido.
Inúmeros pesquisadores e escritores espíritas, livres-pensadores, têm contribuído no esforço de refletir sobre os desafios da sociedade contemporânea. Alexandre Júnior alertou que:
“O espírita deveria entender que não existe uma intervenção divina para infringir a dor pela dor e o castigo pelo castigo; são recursos terapêuticos e educativos que chegam até nós quando a nossa forma de viver nos afasta da lei básica da vida: o amor, a solidariedade e a luta para a construção de uma sociedade mais justa e equânime. Tal raciocínio se mostra nitidamente quando Kardec indaga aos Espíritos, na pergunta 621 de O Livro dos Espíritos ‘Onde está escrita a lei de Deus?’ Ao que respondem: “Na consciência”. [1]
O referido autor, rompe um paradigma muito habitual no meio espírita, ao argumentar sobre a função da reencarnação: [2]
“A função da pluralidade das existências é nos fazer alcançar a felicidade e para isso se faz necessário que quebremos paradigmas que nos foram impostos por interpretações equivocadas do Espiritismo como, por exemplo, a ideia de que o sofrimento está intimamente ligado ao processo reencarnatório.” [3]
O sofrer faz parte do viver, e reencarnação não é sinônimo de castigo. Padecer de doenças, de sofrimentos físicos, mais ou menos graves, faz parte das injunções do mundo material no qual estamos vivendo. Assim, também, estamos mais ou menos expostos aos aspectos sociais da violência, de acidentes, de catástrofes climáticas, sem que haja, necessariamente, alguma espécie de determinismo reencarnatório. Na dimensão dos relacionamentos, a experiência cotidiana é construída a partir da consciência e da liberdade de cada um. Com isso, não estamos negando os possíveis impactos do passado de vivências no contexto da atual existência. Como ponderou Ademar Arthur Chioro:
“Para o espiritismo laico e livre-pensador, os acontecimentos e vicissitudes da vida podem ou não estar relacionados com existências anteriores. A vida é vivida no mundo das probabilidades, das múltiplas possibilidades em que os acontecimentos vão se desenrolando e que as escolhas são efetuadas, nos limites – individuais e coletivos – determinados pelas circunstâncias da vida. Mas sempre, em qualquer circunstância, serve como processo de aprendizagem para o espírito encarnado e para os que com ele compartilham a existência.” [4]
É preciso humanizar o sofrimento, preservando a dignidade de quem sofre. Ninguém deveria se sentir diminuído ou julgado socialmente por manifestar suas dores emocionais, seus conflitos íntimos, suas angústias, suas tristezas e frustrações. Em nenhum momento tais relatos devem ser banalizados por quem os ouvem.
O desconforto humano “obriga” a adentrarmos em nossas profundezas. É um processo difícil de descobertas e de “(re)nascimentos”. A sociedade paliativa, no entanto, artificializa o sofrimento com sua “anestesia da realidade”.[5] Muitos espíritas tradicionais seguem pelo mesmo viés, com discursos decorados, repletos de “consolação” e de positividade fácil diante do sofrimento alheio.
O contexto de insensibilidade com a dor do outro está, portanto, associado à crescente banalização do sofrimento na cultura atual. Existe um mercado que consome a midiatização do espetáculo grotesco da violência e que promove ou contribui para o esvaziamento das sensibilidades. A sociedade capitalista anestesia a realidade, propiciando o afloramento do “indivíduo narcísico”. Alguém que vive em busca de sua felicidade, de suas conquistas, de seu sucesso, e que não consegue, ou não deseja perceber o outro em sofrimento, pois isso o faz estar diante de sua própria fraqueza. Toda fraqueza deve ser interditada na sociedade resiliente, fundada no ideal do sucesso.
O filósofo espírita Léon Denis, em uma de suas obras mais célebres, escreveu com suavidade: “Fundamentalmente considerada, a dor é uma lei de equilíbrio e educação”. [6] E pondera: “A dor e o prazer são as duas formas extremas da sensação. (...) A tristeza e o sofrimento fazem-nos ver, ouvir, sentir mil coisas, delicadas ou fortes, que o homem feliz ou o homem vulgar não podem perceber”. [7]
A sociedade contemporânea tenta, obsessivamente, banir o sofrimento para mundos distantes e implantar na Terra o reino dos transhumanos, [8] de pessoas que vivem numa felicidade sublime e ininterrupta. Com isso, ficaríamos sem poder “ver, ouvir e sentir mil coisas” sobre nós mesmos. Seria, de fato, o fim da condição humana. Como poderíamos ser felizes se não fôssemos mais humanos? A vida sem dor, ponderou Han, não seria mais uma vida humana: “A vida que persegue e expulsa a sua dor suspende a si mesma”. [9]
A afirmação de Léon Denis poderá soar enfática ou poética: “São necessários os infortúnios e as angústias para dar à alma seu aveludado, sua beleza moral, para despertar seus sentidos adormecidos. A vida dolorosa é um alambique onde se destilam os seres para mundos melhores”. [10] Seria uma interpretação totalmente equivocada afirmar-se que estamos fazendo, ao longo desse texto, apologia à dor ou ao sofrimento. Longe disso!
Todos os avanços da biotecnologia, da farmacologia e das terapias, paliativas ou não, representam fundamentais conquistas para o bem-estar humano. A filosofia espírita é consentânea ao progresso. Mas, é importante não confundir os recursos conquistados para atenuar os sofrimentos, com a ocultação cultural e social do sofrimento. É desta questão que estamos tratando, ou seja, da forma como a sociedade contemporânea se relaciona com o sofrimento e os sofredores. Nesse sentido, não devemos desconsiderar que a dor possui um conjunto de significados.
O desconforto humano gerado pelos sofrimentos, é um sinalizador individual e social que não pode ser invisibilizado, caso contrário, perderíamos os sentidos dos afetos e das escutas. A mão da mãe que acaricia a filha doente, o professor que escuta, comovido, o drama de um aluno, o médico que abraça o paciente, o amigo que, simplesmente, “está junto”, o voluntário que doa com afeto ao necessitado, são expressões humanas e humanizadas da não interdição aos que sofrem.
Allan Kardec introduziu na sociedade ocidental, na segunda metade do século 19, uma alternativa filosófica que é capaz de dialogar com outros saberes, oferecendo, ao mesmo tempo, suas contribuições teóricas e experimentais para repensar, como escreveu Denis, o problema do ser, do destino e da dor. Assim, consideramos como hipótese de reflexão, que a naturalização, humanização e socialização da dor faz parte de uma espécie de disposição auto preservativa dos afetos, instituída pela Lei de Conservação.
“A ação da dor não é menos eficaz para as coletividades do que o é para os indivíduos. Não foi graças a ela que se constituíram os primeiros agrupamentos humanos? Não foi a ameaça das feras, da fome, dos flagelos que obrigou o indivíduo a procurar seu semelhante para se lhe associar? Foi da vida comum, dos sofrimentos comuns, da inteligência e labor comuns que saiu toda a Civilização, com suas artes, ciências e industrias!” [11]
Léon Denis nos apresenta uma “sociologia espírita do sofrimento” ao situar a dor não somente como um mecanismo natural e cultural de preservação, mas também como um dispositivo de progresso social. Se pudermos transpor o pensamento de Denis para o contexto do século 21, poderemos deduzir que a percepção sobre os “sofrimentos comuns” se torna mais difícil numa sociedade com forte presença de uma cultura do individualismo. Na medida em que o outro serve basicamente para “me satisfazer”, o seu sofrimento não me importa. O sofredor passa a não possuir nem voz nem espaço na sociedade narcísica do prazer.
Diante de perdas significativas, sejam elas simbólicas [12] ou concretas, o acolhimento empático ao enlutado, distante de qualquer fala doutrinária, resgata o humano que habita em nós. A empatia só é válida quando está a serviço da escuta: “É onde não somos escutados na singularidade da nossa dor que adoecemos”. [13] Ao ser escutada, a pessoa em sofrimento legitima sua existência.
NOTAS
[1] JUNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades. Um diálogo com as questões sociais. Recife: CBA Editora, 2022. p.25.
[2] A reencarnação é o retorno do espírito à existência corporal. Ver: O Livro dos Espíritos. Questões 166 a 170.
[3] Idem. p. 34.
[4] CHIORO DOS REIS, Ademar Arthur. A Reencarnação como dispositivo de construção de autonomia: uma visão laica e livre-pensadora. In. Perspectivas Contemporâneas da Reencarnação. Santos-SP: Cpdoc/CEPAbrasil, 2016. p.189.
[5] HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa. A dor hoje. p. 64-65..
[6] DENIS, Léon. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. Terceira parte. Item XXVI. p. 372.
[7] Idem. p. 372-374.
[8] HAN, Byung-Chul. Op. cit. p.114.
[9] Op. Cit. p. 115.
[10] DENIS, Léon. Op. Cit. p. 375.
[11] DENIS, Léon. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. Terceira parte. Item XXVI. p. 378.
[12] Refere-se aos processos de rupturas ou perdas que ocorrem durante a vida. São exemplos: separações conjugais traumáticas, perda da juventude ou da vitalidade, a perda de um filho idealizado, etc.
[13] ALMEIDA, Jerri. Morte, luto e imortalidade. Olhares e perspectivas. p. 170.
Muito boa reflexão, Jerry. Gratidão. Doris Gandres.
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