Por Jerri Almeida
“Não se deve temer no suicídio o suposto castigo de Deus, mas as consequências naturais do ato de violação de um processo vital. Temos que compreender a dinâmica da natureza, tanto para viver como para morrer”. [1]
O suicídio é um tema complexo que acompanha o ser humano ao longo da história. Além do sofrimento que envolve o protagonista e seus familiares, temos o dilema do julgamento social, normalmente, associado a uma perspectiva religiosa e moral sobre o ato. Se o tema da morte é, visivelmente, indigesto para muitas pessoas, o suicídio como abandono voluntário da existência é ainda um tabu. O assunto enseja não somente muito estudo e reflexão, como também o diálogo fraterno e a capacidade de escutar o outro na vida cotidiana.
Os sofrimentos e dores emocionais fazem parte da condição humana. Ninguém deveria se sentir diminuído por sofrer. Todos nós, em algum contexto, sofremos. No entanto, é fundamental compartilharmos nossa humanização, nossas dores emocionais e angústias. Os dramas individuais são complexos e, em nenhum momento, devem ser banalizados por quem os ouve.
Allan Kardec, com seu olhar humanista, buscou por meio de evocações de espíritos que haviam se suicidado, compreender os motivos do ato e a condição dessas pessoas no mundo invisível. O primeiro aspecto concluído por ele, é que existem múltiplos fatores para o suicídio e, na maioria das vezes, eles estão de tal forma associados que se torna impossível uma resposta objetiva e simplificada para o ato. O segundo aspecto, é que o suicida está mergulhado em sofrimentos. Na vida espiritual ele continua necessitando de amparo especializado e acolhimento afetivo.
Infelizmente, a literatura espírita sobre o assunto, sem ter se desvencilhado de uma narrativa teológica de imputação de castigos, vem desumanizando o suicida, situando-o num contexto infernal, “umbralino”, “trevoso”, aonde o ser é degredado para vales sombrios e horripilantes. Os sofrimentos e dores emocionais e conscienciais acompanham naturalmente a pessoa, independente da geografia onde se encontre. No entanto, as construções destas narrativas simplistas e moralistas desconsideram o complexo humano. Enfatizam um nexo causal: desobedeceu a uma lei e será punido sumariamente, sem contextualizar mais profundamente a historicidade daquela pessoa que assim procede.
São narrativas que em nada agregam para humanizar o humano ou para espiritualizar o espírito. Reproduzem uma carcomida e obsoleta teologia do medo. Imagine os pais, que vivenciaram o suicídio de um filho adolescente e que alguém lhes aconselha a leitura de um desses livros sobre o assunto? Ou, que vão assistir a uma palestra espírita, em busca de fortalecimento e consolo, e escutam uma abordagem recheada de narrativas horríveis sobre o “vale dos suicidas”?
A filosofia espírita deve realizar uma leitura mais profunda sobre o Ser e seus dilemas, sofrimentos e vivências, sem julgamentos, sem cair no abismo retrógrado das religiões e de seus discursos e narrativas moralistas. O sujeito que se suicidou, em função de inúmeros fatores, é um ser humano que chegou numa situação de grande sofrimento, pois o objetivo de uma pessoa mentalmente saudável é sempre o de viver.
Para o médico e psicanalista R.M.S. Cassorla:
“Por trás das motivações aparentes do ato suicida, existem mecanismos mentais e conflitos não conscientes. O próprio paciente sabe muito pouco de suas motivações: o que ele comunica, de alguma forma, a parentes, amigos e profissionais de saúde é apenas uma parte do que está vivenciando, e essa parte vem deformada por conflitos e pelo seu estado mental. Muitas vezes, o paciente acredita ter clareza sobre as motivações de suas ideias suicidas, mas ele não sabe que desconhece o mais importante. Lembremos, mais uma vez, que as ideias e percepções do paciente são falhas e transformam a realidade”. [2]
Apesar das motivações suicidas serem complexas e nem sempre claras, os sofrimentos e comportamentos decorrentes são visíveis: “Quando a pessoa dá sinais de que não deseja mais viver, de que a vida não vale a pena, a necessidade de ajuda profissional rápida se impõe”, alerta o referido médico. As abordagens religiosas sobre o suicídio são superficiais, limitantes e reducionistas. Fixam-se num discurso moral, sem adentrarem nas profundezas da alma humana. Com sua filosofia progressista, o espiritismo caminha com a ciência.
Na época de Kardec, a psicologia enquanto ciência acadêmica ainda não existia. No início do século XIX o célebre médico francês Philippe Pinel (1745-1826) considerava que haveria uma lesão no cérebro que causava uma “sensação dolorosa de existir” e provocaria o suicídio. Logo depois, um de seus discípulos, chamado Jean-Étienne Esquirol (1772-1840) afirmava que todos os que cometiam suicídios eram mentalmente insanos. Nessa época, era comum médicos associarem o suicídio à loucura. Essas ideias faziam parte dos conhecimentos científicos na Europa e, portanto, também estão presentes em alguns textos de Kardec.
Todavia, Kardec apresentou outros possíveis fatores para o suicídio: “Entre as causas mais numerosas de excitação cerebral, devemos contar as decepções, os desastres, as afeições contrariadas, as quais são também as mais frequentes causas do suicídio.” Considerou um elemento novo nessa história: a obsessão. Esta não poderia ser confundida com a “loucura patológica”, pois: “não provém de lesão alguma cerebral”. Para o fundador da filosofia espírita, “poderia” haver em alguns casos, uma intensa influência espiritual negativa sobre o indivíduo, estimulando-lhe ideações suicidas.
Na questão 957 de O Livro dos Espíritos está posto que: “Não há penas determinadas” para as consequências do suicídio, pois: “em todos os casos, correspondem sempre às causas que o produziram. Há, porém, uma consequência a que o suicida não pode escapar: o desapontamento.” Na medida em que a vida continua o autoextermínio não existe e, portanto, a consciência permanece mergulhada na vida, com suas vulnerabilidades e possibilidades.
Quem lê a obra de Kardec percebe claramente que tanto ele quanto seus interlocutores espirituais não haviam conseguido se desvencilhar totalmente de uma concepção teísta, de castigos e expiações. Entretanto, analisando-se as questões 952 e 952a de O Livro dos Espíritos, que tratam sobre o suicídio, percebemos que a ideia de “punição” apresentada não se refere a um “castigo divino”, mas a um sentimento relativo à “consciência de culpa” pelo ato perpetrado. Para quem já passava por sofrimentos emocionais na Terra, o suicídio, além de gerar frustração e desapontamento, pela permanência na vida, também produz uma consciência de culpa que potencializa ainda mais o drama já vivido. A dialética da consciência é sempre o pior juiz.
Sem embargo, o suicida, concretizando ou não seu ato, necessita de um olhar amoroso. Estamos tratando de um assunto complexo com aspectos multifatoriais e que necessita de ajuda humanizada e especializada. No mundo dos espíritos, é de se supor que os que cometeram suicídios não sejam classificados e segregados como párias que transgrediram uma lei. Tal perspectiva não se ajustaria ao conceito de amor e compaixão. Se, nas sociedades desenvolvidas, os maiores criminosos são tratados com justiça e humanidade, como imaginar algo diferente nas sociedades espirituais em relação ao ser humano que, mergulhado em dramas e sofrimentos emocionais, precipitou sua morte?
A Justiça Divina não poderia estar abaixo da justiça humana. Seria um profundo contrassenso. Na segunda metade do século XX e início do século XXI, o suicídio passou a ser tratado como um assunto de saúde pública, com ênfase na sua prevenção e posvenção. Abandonou-se a cultura arcaica da condenação e do castigo para uma cultura de prevenção, esclarecimento, acolhimento e do cuidado. Por que no mundo dos espíritos seria diferente?
NOTAS
[1] PIRES, J. Herculano. Educação para a morte. São Bernardo do Campo-SP: Correio Fraterno, 2016. p.178 (Cap. Os voluntários da morte).
[2] CASSORLA, R.M.S. Suicídio. Fatores inconscientes e aspectos socioculturais. Uma introdução. São Paulo: Blucher, 2017. p.38.
Neste mês do “setembro amarelo”, vou publicar alguns artigos sobre o tema do suicídio que, de forma geral, fazem parte do meu livro: “Morte, luto e imortalidade – Olhares e perspectivas” (Editora Letra Espírita, 2021).
Excelentes reflexões, Jerry. Gratidão, Doris Gandres
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