Valnei França
O termo preconceito tem origens no “Direito Romano”, “prejulgare”. Todavia, ao olharmos mais atrás, nos tempos, verificamos uma ação que corresponde ao sentido deste termo. A vida comunitária era insegura quanto às questões climáticas, sazonais e também em relações intergrupais, que nem sempre foram amistosas. O clima de animosidades criou situações que forneceram as bases para toda uma gama de precauções com a intenção de se evitar o perigo.
Era vital a identificação antecipada daquilo que poderia causar prejuízos e, na pior das hipóteses, a morte. Então foram listadas a aparência, o comportamento, a fala (língua), em síntese uma “cultura diferente”. Com a dinâmica social, os grupos foram ficando cada vez mais complexos e tal processo foi criando segmentos sociais que passaram do medo, da insegurança ao privilégio. Desta forma, uma maneira de assegurar aquilo que já foi conquistado por razões diversas, agora precisaria de uma justificativa e, nada mais plausível, que desmerecer “o outro”. Esta pode ter sido a maneira da criação das castas religiosas e as políticas (de sangue nobre). Em suma, aquilo que de certa maneira era uma questão de sobrevivência passa agora a ser uma garantia de privilégios, aquilo que se dirigia ao ambiente externo do grupo, agora era utilizado dentro do grupo. “O inimigo agora é outro”.
Conclusão. “O preconceito é uma questão cultural”, tanto em sua ação quanto na sua concepção. Não existe grupo social e/ou sociedade que não contenha preconceitos em suas relações. O importante é não negar e procurar identificar, entender e buscar soluções que esclareçam e ensinem a acabar com as ações de preconceito. É na “cultura transmitida que nosso olhar é educado”.
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Fácil de se pronunciar e difícil de se cumprir, ou será de realmente compreender?
Deveria ser fácil ao Espírita, que estuda a Doutrina, ver a extensão desta parábola. César, significa o mundano, aquilo que se refere ao Mundo em que vivemos, a matéria. Ao passo que Deus, tudo que tem relação com o espírito. Assim, o Mestre nos mostra o que deveremos valorar em nossas vidas. A “Velha Guarda” afirmava que devemos ter aquilo que podemos levar depois da morte, o resto fica na terra (em minúsculo).
Qual o problema das relações de preconceito? A identificação? O discernimento? A solução dos conflitos? Ou melhor, “quem somos nós”?
Nos consideramos “Seres humanos”, “homo sapiens, sapiens”, ou seja, “humano sábio, sábio”. “É muita humildade”. Nos constituímos de um corpo e uma alma. Voltando à parábola, corpo é mundano/matéria e a alma espiritual. Por princípio aceitamos que a matéria viva um dia perece ao passo que a alma, enquanto espírito, é imortal.
Outro princípio fundante da Doutrina Espírita é o da “reencarnação”. O espírito possui uma trajetória em que, periodicamente, necessita retornar à condição de alma, “espírito encarnado”, onde ele se aprimora pondo em cheque suas pretensões materiais na medida em que cultiva seus atributos morais “mais elevados”. Podemos sintetizar dizendo que o Humano cultiva seus melhores atributos a partir do “amor ao próximo”. É essencial não esquecer que o aprimoramento dos atributos morais não se dá em uma só existência corpórea e sim em várias, e várias, sucessivas reencarnações. É um processo.
Qual a relação da reencarnação e a questão do preconceito?
Já é sabido que o corpo perece. Que o espírito é imortal, sobrevive à morte do corpo. Então, a partir da valoração havida em cada reencarnação o espírito carrega consigo um grande conteúdo de conhecimentos, e saberes, que afloram em cada reencarnação futura de acordo com as condições de seu aprimoramento espiritual e as condições que ele encontre, enquanto encarnado. Sabendo que a valoração também é uma condição de geração e perpetuação de preconceitos, é na educação que residirá, em um primeiro momento, o combate necessário a essa tendência. Toda criança forma o seu “mapa mental” a partir das primeiras informações recebidas. É este um período crítico de superação ou afirmação dos pendores morais.
Como compreender no processo reencarnatório a relação de preconceito?
Iniciamos este texto com a relação entre a necessidade de sobrevivência e a de garantia de privilégios. É em nosso passado que se encontra o conteúdo do preconceito, pois se o corpo perece é no espírito que fica retido aquilo que consideramos certo e o errado, o que aceitamos e o que não aceitamos. O espírito, em sua trajetória reencarnacionista, passa por vicissitudes onde pode adquirir vícios que, não combatidos, gerarão a aceitação, e/ou criação, de preconceito(s).
Podemos até admitir que aquilo que sentimos pode não ter sido adquirido nesta encarnação e sim não ter sofrido o crivo adequado para as atuais relações sociais em nossa formação, passando da infância até a idade adulta. Não há período para aflorar as causas que formem, ou aceitem, um preconceito e sim condições para que estas aflorem, independente da idade.
O espírito é “único”, sem problemas estruturais. Ele, em sua trajetória, vai adquirindo aspectos, valores a cada reencarnação, independentemente de seu corpo que, por sua vez, pode servir como base de criação de preconceitos e estes serem adquiridos, aceitos, pelo espírito.
É o corpo que possui limitações, no Mundo. Por definição o Planeta Terra é finito, possui limites, ao passo que o “Plano, ou Mundo Espiritual” é infinito. Ele, o corpo, pode não enxergar, não caminhar direito, não poder andar, não falar, ter dificuldades de se exprimir verbalmente, não ter condições de concatenar pensamentos, articular ideias. O espírito exprime sua vontade e a fisiologia do corpo procura atender, contudo, pode ser que este corpo tenha algum problema fisiológico, então, as ordens que o espírito dá não serão realizadas pelo corpo. Este não poderá atender, pois está falho neste ou naquele procedimento.
Um exemplo. O espírito que encarna em um corpo cujo sistema nervoso possui um problema fisiológico que impede as comunicações de determinadas células. Por mais que o espírito tente, não conseguirá o intento de se comunicar. O problema não estará nas cordas vocais e sim em parte de seus neurônios. É possível até imaginar o sofrimento que passa o espírito dentro deste corpo querendo dizer “mamãe eu te amo” e seu corpo balança, sai um som desarticulado e ninguém compreende nada. A paralisia cerebral possui várias situações e é um exemplo da relação do espírito com um corpo debilitado.
Vamos chamar o tio Darwin pra conversar. Assim como a genética carrega traços das mais antigas gerações, o espírito carrega influências de todas as suas reencarnações. Então, para o Espírita, a preocupação ou valoração excessiva do corpo é contraditório com sua essência como “Ser”.
Modernizando o exemplo.
Imaginemos um conjunto de mil computadores, diversas formas, condições, cores, tamanho… considerando um HD/IA (HD com Inteligência Artificial), ao colocarmos ele em cada um dos computadores sua performance será limitada ou potencializada de acordo com os componentes de cada computador. Pronto, ao considerarmos o HD/IA um espírito e os computadores os diversos corpos nos quais ele reencarnou, temos uma analogia das relações do espírito e os corpos num processo de reencarnação. Assim, podemos inferir que a forma não determina e sim limita o conteúdo, e este é alimentado pelo processo. Assim, nossos corpos são temporários e pertencem à terra, enquanto o espírito pertence ao Mundo Espiritual e a guarda de todos os aprendizados ocorridos durante o processo. Podemos até afirmar que, atualmente, os “computadores quânticos” são os “Usain St. Leo Bolt” da informática.
A violência no preconceito pode ser resultado de uma vingança, desta ou de outra vida, portanto, é essencial que na educação seja erradicado esse tipo de pensamento e/ou ação.
“Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão,
até que volte à terra, visto que dela foi tirado;
porque você é pó, e ao pó voltará."
(Gênesis 3:19)
“Preconceito? Nem brincando”.
Quando um Juiz inocenta o agressor de racismo e na justificativa coloca que o ato “foi uma brincadeira inocente”, ele incorre no erro de não considerar a vítima só o agressor. É provável que ele (o juiz) nem perceba que é preconceituoso e que, em sua vida, muitas vezes já contou piadas racistas, preconceituosas, e se divertiu muito. Então, como vê a ofensa? No Brasil, a sociedade convive com várias justificativas que negam o racismo, o preconceito, tipo “negro de alma branca”, e o pior “democracia racial”. A intolerância religiosa, por exemplo, é fruto do privilégio, status, exclusivismo, é uma forma de colocar, ou considerar “o outro” em uma condição de inferioridade. É na análise da “cultura” que vamos ver as diferentes formas de preconceito, as ações se assemelham a uma eterna competição na qual “os que estão certos devem ganhar a qualquer custo”. Percebemos isso na violência contra a comunidade LGBTQIAPN+. “A trave no olho” impede de os verem como iguais, pois historicamente foram segregados, violentados, mortos. Isto, numa variação de aparências, modos (hábitos) e costumes, por quê não dizer, ousadias. A Sociedade homogênea se considera “limpa” e promove uma “mistanásia” na busca em manter a sua homogeneidade
O Espírita não tem culpa de ser preconceituoso, sua culpabilidade reside em não combater dentro de si este mal. Somos o resultado da somatória do que trazemos com tudo aquilo que nos foi ofertado e aceitamos. Somos Seres e Espíritos históricos, nossa bagagem é imensa, portanto, devemos estar atentos a todo momento por pensamentos, e ações, que nos chegam, da nossa herança espiritual, cultural ou cotidiana. “Orai e vigiai!” Assim, poderemos discernir a melhor maneira de trabalhar para o nosso aprimoramento espiritual. Por quê? É simples, não basta não ser preconceituoso, como Espíritas, somos responsáveis pelo avanço moral, e social, da Sociedade em que vivemos. É nela que se dão as relações sociais que possibilitarão debelar ou reforçar os pendores perniciosos tanto individuais quantos os coletivos.
São muitas as variáveis para uma conclusão, neste problema. Todavia, podemos indicar um caminho. Bárbara Carine nos conta sobre a filosofia Ubuntu, que
… Nessa filosofia, o outro assume um lugar de suma importância na constituição do eu. Entende-se por outro tudo aquilo que não sou eu e, nesse sentido, é tudo que materialmente está fora de mim, seja ele humano ou não. Assim, o cuidado do outro (humanos, animais, natureza, universo) é cuidar de mim mesmo. Bárbara Carine, “Como ser um Educador Antirracista”, 2023.
Se colocarmos esse “fio condutor” em nossas existências, a possibilidade de compreendermos a “nossa função”, enquanto encarnados será tão possível quanto construção de uma relação não egoísta, individualista, mas como Sujeitos Sociais pertencentes ao Mundo. E, desta forma, reeducando nosso olhar para com o outro. “… Amar o próximo como a ti mesmo”.
¹João Victor Gomes Correia e Margareth Vetis Zaganelli referem-se à mistanásia como a morte que se caracteriza em decorrência de condições socioeconômicas e que poderia ser evitada em um contexto de acesso amplo às políticas públicas governamentais. A Mistanásia ou a Eutanásia Social, Direito da Saúde.Acessado em 02/10/2023 <https://www.megajuridico.com/a-mistanasia-ou-a-eutanasia-social/>
Nossos agradecimentos e boas vindas ao confrade Valnei França, o mais novo colaborador do Canteiro de Ideias. Jorge Luiz.
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ResponderExcluirOlá!
O texto me proporcionou maior amplitude, conhecimento e momento de reflexão quanto ao exemplo do computador, e a nossa evolução através da espiritualidade, lembrando que isso ainda é individual, apesar que já houve muito progresso quanto ao preconceito. Mas falta muito para se chegar ao justo e de direito para todos.
Vamos em frente com um passo de cada vez, e não perdermos a esperança.
Sempre na luta e por um mundo melhor.
Parabéns pelo seu artigo.
Força, Foco e Fé sempre.
MGHS.
Parabéns por gestar e parir essas reflexões tão necessárias. O preconceito só recua se encontrar oposição.
ResponderExcluirParabéns! Belas reflexões, que venham outros artigos tão pertinentes quanto este!!!
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