Por Jerri Almeida
O espiritismo reencontra sua perspectiva social! Desde Deolindo Amorim, Humberto Mariotti, Nei Lobo, Herculano Pires, Cosme Mariño – para citarmos apenas alguns pensadores espíritas que se preocuparam com temáticas sociais – o movimento espírita brasileiro não contava com uma publicação de sólida envergadura intelectual sobre o assunto.
Essa lacuna foi superada, no entanto, com a recente publicação do livro: “Por uma teoria espírita sobre gênero e sexualidades – um diálogo decolonial”, de Alexandre Júnior. O livro, sem dúvida, abre inúmeros pontos para estudos, investigações e debates sobre um olhar espírita para questões fundamentais de nossa época. Com sólida fundamentação na obra kardequiana, sempre em diálogo com pensadores sociais, o autor problematiza posturas conservadoras presentes no movimento espírita hegemônico, defendendo a “democratização do amor, como algo possível do humano, espírita ou não espírita, cristão ou não cristão, bem como a percepção de que esse sentimento deva exercer uma ação norteadora na práxis espírita”. (p.31)
O livro é composto por três capítulos, divididos em instigantes subtemas que se conectam entre si, constituindo pertinente discussão que não se prende à metafísica, mas – sem negá-la – sustenta que a “verdadeira vida é a que estamos vivendo no momento”, defendendo que: “Precisamos retomar e produzir um Espiritismo que alie as perspectivas espirituais à necessidade de vivência do mundo social contemporâneo; que entenda que a reencarnação não tem caráter punitivista; que as relações entre os seres são sociais, independentemente da condição (encarnado ou errante) em que se encontrem os sujeitos (...)”. (p.73)
O autor cunha a expressão: “Seres Humanos-Espíritos-Sociais” para melhor situar um debate que visa reintroduzir os ditos “Espíritos” na condição de seres “Humanos e Sociais”, como categoria abandonada pelo meio espírita religioso-conservador. Para Alexandre, não é possível um processo de fragmentação ou descompactação do que somos. (p.102) Na verdade, segundo nosso autor, é preciso pensarmos numa práxis espírita que contemple o ser humano em suas várias dimensões: humana, espiritual, cultural, biológica, social, emocional, cognitiva e afetiva. Com isso, emerge uma educação multidimensional da realidade, que seja capaz de atuar dentro da cultura de seu tempo, como agente estimuladora de progresso. Uma educação, sobretudo, que “favoreça, viabilize e crie o diálogo”.
Para isso, é preciso “desdogmatizar”, desmitificar o espiritismo brasileiro! Em suas pesquisas, Alexandre Júnior conclui que os espíritas tradicionais tratam “o mundo social com desprezo, desdém, retirando-lhe a importância de sua vivência para a produção de uma sociedade mais justa e mais igual”. (p.101) O movimento espírita hegemônico, com seu caráter essencialmente religioso/metafísico/dogmático, propicia um processo de alienação da realidade social que necessitamos superar.
De certa forma, existe no contexto do movimento espírita hegemônico, um processo colonialista de desumanização do humano, de silenciamento das subjetividades e de artificialização do progresso, calcado no discurso individualista da “reforma íntima” e da “ação da caridade” aos pobres. Com isso, invisibiliza-se os problemas sociais e as identidades. Para o autor, há “um desgaste no conceito de ‘caridade’ conforme utilizado pelo referido Movimento Espírita”. (p.122)
É preciso, segundo nosso autor, resgatar o sentido de “solidariedade social”, estabelecendo-se um olhar e uma práxis para as realidades sociais de nosso tempo. Uma busca por práticas que “suscitem igualdade e justiça social”. Em nenhum momento, importante ressaltar, Alexandre nega o valor e a importância da caridade como prática espírita. A grande questão levantada por ele, é a importância de ampliarmos o debate para uma filosofia social espírita que analise criticamente a sociedade capitalista, desigual e injusta.
“Dessa forma, o Espiritismo seria capaz de transversalmente contribuir com uma paisagem espiritual reencarnacionista, imortalista, interexistencial, ao mesmo tempo que profundamente social, fraterna e solidária, como é sua proposta original.” (p.123)
Segundo o autor, esse diálogo, não dogmático, aberto para reflexões sociais, é a base para a “produção de uma teoria de gênero e sexualidades”. (p.145) Teoria essa capaz de respeitar as diversidades. E enfatiza: “Se não aprendemos a amar espiritualmente, precisamos aprender”.(p.144) O movimento espírita hegemônico, federativo, ao longo do tempo, inviabilizou o debate sobre gênero e sexualidades focado numa literatura mediúnica conservadora e inquestionada, produzida em grande parte, na primeira metade do século XX. Tal movimento, desconsidera Kardec na prática, pois o fundador da filosofia espírita era um homem de pensamento aberto ao debate crítico sobre o mundo e o tempo em que vivia!
Em seu excelente livro, Alexandre Junior não fica apenas numa discussão teórica pois, como diz, não deseja construir cátedra ou verdades incontestáveis, muito menos esgotar discussões sobre o assunto. Por isso, ao encaminhar-se para o encerramento de sua obra, apresenta algumas questões das quais destaco alguns pontos num recorte pessoal:
a) É necessário o resgate do pensamento de Allan Kardec e de autores espíritas clássicos, estabelecendo diálogos com a cultura atual; b) Fundamental um espiritismo progressista, crítico e socialmente engajado, capaz de dialogar com as ciências humanas e com os movimentos sociais; c) O espiritismo é apartidário mas não apolítico; d) Não descaracterizar o espiritismo mas também não desconsiderar o conhecimento científico produzido, como referencial para problematizarmos o próprio conhecimento espírita; e) Pensar o espiritismo como uma das formas de se produzir uma sociedade que se ame; f) Pensar os Centros espíritas, também, como centros de formação do amor comunitário; g) O progresso não se dará através de uma “reforma íntima” que, de tão íntima, tornou-se egoísta e antissocial; h) Compreendermos a reencarnação como ação pedagógica e não como instrumento punitivista; i) Entender gênero e sexualidades como performance social.
Torna-se praticamente impossível você concluir o livro e continuar vendo o espiritismo como antes, permeado de dogmas, de concepções limitantes e conservadoras. Trata-se de uma obra que problematiza, desconstrói e desnuda o saber fechado e os preconceitos existentes no movimento espírita hegemônico, recolocando o “humano” no centro dos debates. Alexandre Junior, talvez esteja iniciando um novo humanismo espírita, reconfigurando e atualizando os fundamentos de uma filosofia social espírita. É um livro para muitas leituras!
Fonte
JÚNIOR, Alexandre. Por uma teoria espírita sobre gênero e sexualidades: um diálogo decolonial. Maceió: CBA Editora, 2023.
Excelente reflexão sobre a obra e o autor. E a possibilidade de ampliar a discussão em torno do ser humano como centro dessa discussão.
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