Por Dora Incontri
Algumas esquerdas mais radicais – e não tenho nada contra o radicalismo nesse caso, porque esquerdas menos radicais tendem a fazer concessões ao sistema vigente –, que podem ser socialistas/marxistas ou anarquistas, ficam enfurecidas quando se propõe alguma possível conexão com qualquer forma de espiritualidade. Isso provém de uma tradição crítica de Marx a Bakunin. Tanto comunistas quanto anarquistas se forjaram no anticlericalismo e no antirreligiosismo como necessidade histórica de cortar as amarras do poder das Igrejas – católica, protestante, ortodoxa. E isso teve um contexto histórico, uma necessidade talvez, uma demanda do tempo.
Recentemente, a Editora LavraPalavra publicou o interessante livro Lênin e a Religião, e li confrangida as cartas do autor ao meu admirado Maxim Gorki, desancando-o terrivelmente porque o escritor de A mãe havia feito uma reflexão sobre um conceito de Deus, ainda que de uma maneira longínqua de qualquer forma de fé.
Então, parece que há uma interdição cega, diria quase uma proibição da fé ateia – assim me permito dizer –, que impede que alguém que seja militante de esquerda se faça defensor de qualquer remota ideia de espiritualidade.
Mas e o socialismo cristão, que se enraíza desde as comunidades primitivas dos apóstolos, às ideias hussitas e à revolução de Thomas Müntzer? E o anarquismo cristão desde os quakers a Tolstoi? E a teologia da libertação de Boff e Frei Betto? E os espíritas que, antes mesmo da teologia da libertação, escreviam livros sobre socialismo, dialética e espiritismo, na França, no Brasil e na Argentina? (Há uma série dessas obras publicada na Editora Comenius.)
E a possiblidade de uma espiritualidade ateia, como propõe André Comte-Sponville? E um cristianismo ateu, como interpreta Ernst Bloch, entendendo aliás tanto o Velho, quanto o Novo Testamento como anúncios de um Reino, de uma esperança de transformação deste mundo e não a projeção de uma Reino além?
Só por essas citações, vê-se que o pensamento verdadeiramente dialético não se prende ao simplismo das posições extremadas e engessadas. Os contrários se tangenciam, podem se fazer sínteses dos opostos. E há interseções e conexões entre pensamentos, que podem ser enxergados superficialmente como incompatíveis.
Assim, nada impede que promovamos diálogos entre teorias de esquerda (sejam marxistas em suas diversas matizes, ou anarquistas, também em suas inúmeras manifestações) com valores religiosos. Aliás, quem de fato entende tais correntes, inseridas que são na própria história ocidental, com suas raízes judaico-cristãs, saberá que há mais coisas em comum entre Jesus e Marx e entre Proudhon e cristãos, do que imaginam nossas vãs filosofias. E isso escandaliza tanto certos religiosos quanto certos militantes de esquerda.
Ideias de igualdade, de anúncio de um Reino aqui mesmo, de fraternidade universal, de justiça para os pobres e libertação dos oprimidos têm ressonâncias bíblicas, apesar da religião ter sido usada em sentido contrário, com todo o seu cortejo de fanatismo, opressão e conservadorismo.
Quando se trata, entretanto, de uma conexão entre esquerda e espiritismo kardecista, então os ânimos se exaltam com maior furor, tanto da parte da direita espírita (que até agora tem sido hegemônica no movimento, mas isto está mudando), quanto da parte de quase todas as esquerdas. Isso porque o espiritismo enfrenta muito maiores preconceitos e rejeições que outras tradições. Essa reação apenas revela completa falta de conhecimento de Kardec e de todos os que se dedicaram e até hoje se empenham num pensamento crítico, inspirados por sua obra.
E logo, como um mantra, surgem as acusações de racismo em Kardec, como se meia dúzia de parágrafos infelizes, que repudiamos plenamente, mas próprios do contexto eurocêntrico da época – e que aliás estão também presentes em Marx, mas muito bem escondidos e quase nunca comentados – pudessem anular todas as suas proposições de emancipação humana, de abolição de preconceitos de cor e de classe (segundo suas próprias palavras) e de fraternidade entre pessoas e povos. Justamente, meu livro recém-lançado e com a primeira edição já esgotada em apenas alguns dias, Kardec para o século 21, prefaciado por Alysson Mascaro, se dedica a esses debates e outros.
Sim, não há só a possiblidade, como a necessidade de formularmos espiritualidades à esquerda, e esquerdas que se voltem para caminhos espirituais, porque precisamos mudar o mundo em todas as dimensões: econômica, política, educacional e… espiritual! Essa dimensão do ser humano não pode ser desprezada, mesmo porque não há como dialogar com o povo, com a secura de um materialismo agressivo em relação às religiões. Críticas aos seus abusos e desvios, sim, mas desqualificação completa de suas contribuições, de preferência não.
Não podemos esquecer das grandes e legítimas personalidades do passado e outras que atuam no presente, com exemplos de fraternidade, de busca de justiça e paz, e resistência às riquezas e exploração do próximo (é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus – dizia Jesus)! Não podemos deixar de lado as grandes contribuições estéticas que seres humanos profundamente impregnados de espiritualidade deixaram para a história: das catedrais góticas às Cantatas de Bach; dos spirituals dos negros norte-americanos às poesias místicas das tradições judaicas, muçulmanas, hindus e cristãs…
Quem não faz gosto com nada disso, que se atenha à tradição antirreligiosa de uma esquerda que se constituiu assim, mas que não desqualifique os que fazem essas conexões e nem por isto são menos críticos e radicais na militância por mudar o mundo!
¹ publicado originalmente no jornal GGN, nesta data.
Excelente texto. Muito pertinente
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