Por Jorge Luiz
Dia de Pentecoste
Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, (II parte, XIV: 4,166), define o médium falante, “em geral, exprime-se sem ter consciência do que diz, e quase sempre tratando de assuntos estranhos às suas preocupações habituais, fora de seus conhecimentos e mesmo do alcance de sua inteligência.” Aqui se insere um caso notável e conhecido dos espíritas, trazido pelo grande sábio Alfred Russel Wallace (1823-1913), naturalista, geógrafo, antropólogo e biólogo britânico, que se referiu à filha do Juiz Edmonds, reconhecidamente médium, que se pôs a falar em vários idiomas, quando só houvera aprendido mal o francês.
Charles Richet, (1850-1935), médico fisiologista francês, laureado em 1913 com o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, cunhou para esse fenômeno o neologismo xenoglossia. Ernesto Bozzano (1862-1943), pesquisador italiano, por sua vez, denominou-o de “comunicações poliglotas”. Ian Stevenson, (1918-2007), cientista e professor de Psiquiatria da Universidade da Virgínia; um dos mais importantes pesquisadores na temática das experiências espirituais, publicou um livro, com o título Xenoglossia, trazendo dois casos de pessoas que falam línguas para elas desconhecidas, como evidências de casos de reencarnação. Stevenson denomina como xenoglossia responsiva. No Brasil, se convencionou considerá-la como mediunidade poliglota, dentro da mediunidade falante.
É importante frisar que na xenoglossia, a língua falada é conhecida ou consiste em um dialeto já morto, desconhecida pela pessoa que a expressa.
Fenômeno dessa natureza ocorreu cinquenta dias após a ressurreição de Jesus, no dia de pentecostes (do grego pentêkostê), narrado em Atos 2:1-13. Muitos zombavam achando-os embriagados, apesar de entendê-los em sua língua nativa. O apóstolo Pedro, no entanto, levantou a voz e os advertiu que os onze, os quais falavam em línguas, não estavam embriagados, mas, que ali se cumprira as profecias do profeta Joel (2:28). Aqui está o advento da mediunidade com Cristo, para demonstrar de forma científica que a morte não existe e é possível se comunicar com aqueles que consideramos chamá-los de mortos, que, na realidade, estão vivíssimos.
O apóstolo Paulo escreveu em sua I Epístola aos Coríntios (14:1-15) acerca dos dons de profecia e de línguas. Paulo, entretanto, no versículo 6, adverte da inocuidade do dom em línguas, em decorrência da incapacidade de se compreender e torná-la edificante para a comunidade. Leia-se:
“Agora, irmãos, se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina.”
A glossolalia, terminologia utilizada pelos pentecostalistas para o fenômeno, difere-se muito da xenoglossia, embora muitos que se debruçam a estudá-la a associe à xenoglossia. Na glossolalia, por norma, a linguagem é ininteligível, acompanhada de expressões corporais que produzem sentimentos de alegria, transbordamento, choro, riso, saltos e gestos. Seus estudos dividem o mundo acadêmico, inclusive como fenômeno psicopatológico e até mesmo charlatanismo. Frase Watts, professor titular do Queen’s College e Diretor do Grupo de Pesquisa de Psicologia e Religião, conclui:
“(...) a pesquisa sobre glossolalia não é, de forma alguma, incompatível com o relato teológico que a vê como uma forma de prática espiritual e inspirada. Contudo, ela sugere alguns refinamentos detalhados da visão carismática mais comum a seu respeito. Em particular, ela sugere que se trate de uma forma extática de louvor religioso, mas não de uma linguagem.”
Watts, considera, ainda, que falar em línguas pode ser resultado de um aprendizado social. Há fatores que apontam para isso, ele diz, inclusive sendo introduzidos à prática por amigos. Ou seja, inconsciente ou conscientemente, Watts tenta chamar a atenção para a diferenciação entre xenoglossia e glossolalia.
Os estados das religiões
Pode-se ser apreciado como intolerante ou mesmo prepotente qualquer um que se atreva a elaborar análises críticas de conteúdo religioso. Para tentar suavizar esse risco, inicialmente, vou recorrer à teoria dos três estados de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) pedagogista suíço, educador pioneiro da reforma educacional e mestre de Allan Kardec. Para Pestalozzi, afirma a professora Dora Incontri:
“O homem, dividido entre animalidade e sociedade, vai encontrar sua síntese na autonomia moral. O estado moral é, para Pestalozzi, a resposta ao conflito posto: se o estado natural revela o homem como obra da natureza e o estado social, como obra da sociedade, o estado moral é aquele em que o homem se faz a si mesmo.”
Dos estados das religiões derivam, obviamente, a divisão das religiões como: naturais, sociais e a religião como um fato da autonomia moral.
Vê-se, portanto, que todos os estudos, que na maioria se realizam acerca das religiões, são como fenômenos sociais, pois assim o estado evolutivo do homem se mostra.
A partir daqui, estou em boas companhias.
Heresia
A palavra heresia (do grego: hairesis=escolha; heressis significa, em grego primitivo, tomada, captura; por ação extensiva: escolha, preferência; no figurado: ação de tomar partido, votar), assim escreve o pesquisador espírita Lamartine Palhano Júnior (1940-2000).
No final do século II, Ireneu (130-202), bispo de Lyon, escreve a obra Contra as Heresias (Adversus Hairesis), contra as diversas seitas que se multiplicavam, dentre elas o que ele denominou gnosticismo.
A principal delas e a determinante para a iniciativa de Ireneu foi o movimento montanista que surgiu com um esforço no sentido de revitalizar as realidades pneumáticas e escatológicas dos primeiros tempos, numa Igreja que tendia negligenciá-las. O montanhismo originou-se provavelmente entre 160 e 170, na região da Frígia, onde um certo Montano, em meio a delírios extáticos, proferia advertências proféticas singularmente instantes. A Montano, associaram-se duas mulheres, Prisca e Maximila, que também começaram a profetizar.
Montano não se considerava só o porta-voz do Espírito Santo, mas a sua própria encarnação. Afirmava que o Paráclito ou Consolador Prometido (Jo 14:26; 16:7), que se confirmara com o Espiritismo, na verdade se realizara com ele. O montanismo foi marcado pelo fim dos tempos.
Marcel Simon (1907-1986), especialista francês na história das religiões, particularmente nas relações entre cristianismo e judaísmo na Antiguidade, e André Benoit (1919-1999), nascido em Montpellier na França e professor da Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, em seus estudos sobre judaísmo e cristianismo antigo, consideram:
“Encarando-se o desenvolvimento doutrinal do cristianismo sob perspectiva cronológica, verifica-se que o século II foi, para o movimento dos seguidores de Jesus, um momento de crise. Diferentes interpretações da mensagem cristã puseram em risco as comunidades cristãs, ameaçando abalar-lhes a fé. Tais interpretações foram a gnose, o macionismo e o montanismo*. (grifos nossos).
Pentecostalismos
Os pentecostalismos ganharam mais força e notoriedade a partir de um evento conhecido como Avivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, em 1906. Conduzido pelo pastor Willliam Symour, similar ao dia de Pentecostes, pessoas de muitas etnias e nacionalidades foram tomadas pelo poder do Espírito Santo e passaram a se expressar em várias línguas. A partir daí, os pentecostalismos se difundiram em muitas nações. Symour, a exemplo de Montano, tinha uma verdadeira obsessão de alcançar o dom de línguas, e que, com essa capacidade, criou o seu ministério, formando missionários que saíram no mundo falando em línguas e os fiéis os compreendiam em suas línguas nativas.
O historiador Alderi Souza de Matos, professor do Instituto Presbiteriano Mackenzie, em entrevista à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, edição 329, de 17.05.2010, associa os pentecostalismos ao montanismo.
Depois de quatro anos, ele chegou ao Brasil, através da Congregação Cristã do Brasil, que centralizou suas atividades em São Paulo. No ano seguinte, a Assembleia de Deus, com sede em Belém, no Pará. A partir de 1970, iniciou-se o neopentecostalismo, com a Igreja Universal do Reino de Deus. A partir daí, muitas outras sucederam-nas, e as variantes continuam até hoje.
Alderi considera que os pentecostalismos estão no gênero de manifestação religiosa conhecida como entusiasmo religioso. Esse entusiasmo religioso é o ponto de partida no qual o fiel alcance a um estado de transe poderá levá-lo à experiência da glossolalia. Esse estado de transe, ou alteração do estado de consciência, é uma experiência que poderá ser alcançada por qualquer indivíduo, por uma série de estímulos. Os pentecostais utilizam a música e dança.
Um estilo musical muito presente nos cultos pentecostais, além da Harpa, é o “corinho de fogo”, que consiste num conjunto com letras e melodias bem simples, geralmente em ritmo de forró, que estão diretamente relacionadas ao êxtase nos pentecostalismos.
Na realidade, não há uma religião através dos tempos que os fiéis não tenham tido suas experiências místicas.
Indagado na referida entrevista qual a importância desse movimento para a sociedade brasileira, Alderi responde: “Não sei se ele trouxe alguma transformação tão importante assim para a sociedade como um todo. Sua contribuição maior foi mais nesse plano individual e familiar.” Quatorze anos passados da entrevista, têm-se certeza hoje que os pentecostalismos não contribuem de nenhuma forma nas transformações sociais. Muito pelo contrário.
Elle Hardy, jornalista estadunidense e autora da obra Beyond Belief: How Pentecostal Christianity Is Taking Over the World, sem edição nacional, em artigo assim considera (saiba mais):
“Trabalhadores ao redor do mundo estão aglomerando-se em igrejas pentecostais, que oferecem não apenas um guia espiritual, como também apoio material. Esta é uma má notícia, uma vez que o apogeu do pentecostalismo está atrelado ao emergente movimento da extrema direita. (...) Pentecostalismo e a extrema direita estão cantando o mesmo refrão gospel.”
O curioso, nisso tudo, é que a agenda da extrema direita brasileira, que flerta abertamente com o fascismo, fere abertamente os princípios da Boa Nova. Portanto, os pentecostalistas não têm nenhuma identidade com o cristianismo, como seus líderes apregoam aos quatro cantos.
Busco, apoiar-me novamente em Pestalozzi, estudado pela professora Dora Incontri. Pestalozzi, em seus escritos, não apenas conclui pela inutilidade de uma religião institucional, esvaziada de espírito, mas também pela sua perversão. Embora reconheça, diz Incontri – há a necessidade lógica da religião como superstição (religião natural) e da religião social, como formas de manifestação dos respectivos estágios evolutivos. Pestalozzi recomenda a necessidade de denunciar os erros e os desvios da religião, enquanto instituição:
“(...) se o homem vê o erro, a superstição e a fraude da religião do Estado, e vê que isso está de fato impedindo a verdadeira religião e o enobrecimento da sua geração, então não se lhe é permitido, mas é um dever mostrar a corrupção de tal religião, mas evidentemente de uma forma que não fira a essência da religião, mais do que seu desvio está ferindo.”
É necessário que todos que se afirmam cristãos, principalmente os espíritas, discutam essas questões abertamente em suas reuniões públicas, workshops e congressos. É preciso separar o joio do trigo.
O homem, como ser pensante, não pode, sob nenhuma condição, permitir que a sociedade se apeie a um grupo de pessoas de má índole, sob liderança de uma fatia de profissionais religiosos que se associam à perversão de toda natureza, sobrepondo seus interesses pessoais aos interesses coletivos. Como parasitas, tentam cooptar a política partidária para sobreviverem, violando a democracia; esta sim, calcada em bases cristãs, visando ao progresso dos povos.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa, ou o sino que tine.” (I Coríntios, 13:1)
(*) algumas condicionantes são discutíveis para a consideração do montanismo como heresia, decidimos mantê-la pela afirmativa do próprio Montano em se considerar Consolador Prometido por Jesus, já que Allan Kardec considera que o Espiritismo realiza a promessa de Jesus, conforme está em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 6:3.
Referências:
BOZZANO, Ernesto. Xenoglossia. Brasília: FEB, 1998.
HARRISON, Peter. (org.) Ciência e religião. São Paulo: Ideias & Letras, 2010.
INCONTRI, Dora. Pestalozzi, educação e ética. São Paulo: Scipione, 1997.
IRINEU. Contra as heresias. E-book.
JÚNIOR, Lamartine P. Teologia espírita. Rio de Janeiro: Celd, 2001.
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. São Paulo: EME, 2001.
PAGELS, Elaine. Além de toda a crença. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
RICHET, Charles. Tratado de metapsíquica – vol. I. São Paulo: LAKE, 2008.
SIMON, Marcel & BENOIT, André. Judaísmo e cristianismo antigo. São Paulo: Pioneira, 1968.
STEVENSON, Ian. Xenoglossia. São Paulo: Vida e Consciência, 2012.
SITES:
https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/3207-alderi-souza-de-matos
Muito esclarecedor e pertinente com ótima fundamentação.
ResponderExcluirMuito boa pesquisa e bom estudo! Doris Gandres.
ResponderExcluirLéo e Doris, gratidão pelo enriquecimento do Canteiro de Ideias. Jorge Luiz
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