Por Jerri Almeida
Podemos pensar numa moral-humanista-espírita, diante dos desafios e complexidades do século 21? Herculano Pires afirmou que: “O homem é um projeto, um ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direção à transcendência que é o objetivo da existência” [1], realizando na vivência do mundo, no plano individual e social, uma síntese dialética de seu desenvolvimento interexistencial [2]. Ora, isto significa que o humano-espírito-complexo é um ser inacabado, incompleto, faltante e, portanto, desejante, autônomo e perfectível, isto é, passível de melhoramento. A filosofia espírita é humanista na medida em que resgata a dignidade dos sujeitos como protagonistas de um mundo melhor, mais sensível, humanitário, empático e amoroso. Eugenio Lara, reconhecido pensador espírita, escreveu que:
“O humanismo espírita (...) se concretiza na evolução intelecto-moral dos seres (..) no incessante desenvolvimento do ser humano. É por isso que o pensamento espírita não se coaduna com sistemas que visem a desvalorização do elemento humano, sejam eles religiosos, políticos ou econômicos. O ser humano deve sempre emergir e ser o protagonista de qualquer projeto que objetive a transformação social.” [3]
Sabidamente, Kardec considerava a moral de
Jesus de Nazaré e a moral espírita uma mesma coisa. Na condição de um europeu
do século 19, o fundador da filosofia espírita, assim como seus interlocutores
espirituais, reconhecia em Jesus o modelo ou padrão de comportamento e de amor
que a humanidade deveria aspirar, mesmo que, do ponto de vista epistemológico,
o espiritismo se afaste da configuração mítico-religiosa e dogmática do
cristianismo. O que significa dizer que: a moral-humanista-espírita não é, pelo
menos no plano teórico, a “moral ressentida” da tradição judaico-cristã
apresentada na genealogia da moral de Nietzsche.
O inacabamento humano define que não há nenhuma pessoa absolutamente exemplar, no sentido de perfeição, neste planeta e, portanto, ninguém deve desejar ser literalmente como Buda, Sócrates, Jesus ou qualquer outro personagem histórico. Se passássemos a viver, em termos de conduta, exatamente como Jesus, por exemplo, seríamos banidos deste planeta. A reivindicação moral é, isto sim, uma busca incessante por justiça, respeito, paz e dignidade, diante da injustiça, desrespeito, violência e exploração.
Os espíritas tradicionais veem no espiritismo, no entanto, uma continuação do cristianismo católico, adaptado, mas permeado por uma moralidade ingênua, que fundamenta os sofrimentos humanos e injustiças sociais com base, exclusiva, nas provas e expiações e cuja compensação se dará no mundo espiritual. Essa moralidade é justificada pelo imaginário teológico de gratificação e compensação futura, produzindo um certo desprezo pela existência material, já que tudo está conforme uma “ordem divina” e o foco é o melhoramento pessoal para escapar do “umbral” e dos sofrimentos no além.
Essa moral fechada, dogmática, maniqueísta, olhando o mundo a partir da dicotomia: bem/mal, certo/errado, moral/imoral, desnaturaliza e desumaniza o humano-espírito-complexo. Trata-se de uma moral dos costumes, conservadora, reducionista e, de certa forma, ingênua. O risco de uma moral universal é o seu totalitarismo. Por outro lado, a incompletude é o fundamento para a abertura, em oposição ao fechamento. A condição inacabada do ser humano faz deste um ser angustiado, capaz de pensar e repensar o seu estar-no-mundo e o regramento que lhe é imposto pela cultura de seu tempo.
Os interlocutores espirituais de Allan Kardec afirmaram que: “A moral é a regra de bem proceder. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos” [4]. Kardec desenvolve a terceira parte de O Livro dos Espíritos para aprofundar reflexões sobre diversos aspectos da vida privada e da vida pública, pois o sentido de moralidade está fortemente relacionado aos valores éticos que nutrem nossa vida em comum. Ele, inclusive como já mencionamos, afirma que: a mais rigorosa justiça é o princípio básico de todas as relações sociais [5]. Logo, a “moral espírita” é, epistemologicamente, o que chamamos de uma “moral aberta”, uma proposta não dogmática, não religiosa, para ressignificarmos, inclusive, o que se define por “regra de bem proceder” no contexto da moral e da cultura ocidental. É preciso refletir sobre a “sujeição do espírito encarnado a imperativos que são estabelecidos como regras, onde este Ser precisa ser obediente, mesmo que as bases que componham estas regras sejam diametralmente opostas ao que verdadeiramente é este Ser” [6].
O movimento Hippie, nas décadas de 60/70, foi transgressor à obediência aos valores conservadores de uma sociedade hipócrita. Defendia a liberdade sexual, o amor livre de preconceitos, os direitos das mulheres, homossexuais e lésbicas, ao mesmo tempo em que criticavam a sociedade consumista. Os hippies não mudaram o mundo, mas influenciaram na mudança dos costumes e do regramento moral. Hoje, há muitos homens realizando atividades domésticas, há muitas mulheres independentes, que trabalham fora e ocupam funções hierarquicamente superiores no mundo do trabalho. Embora, ainda exista grandes lutas para a conquista da igualdade e de direitos numa sociedade estruturalmente discriminatória como a nossa.
O filósofo francês Gilles Lipovetsky considera que vivemos numa época pós-moralista, de revitalização dos valores. Para ele, estamos na emergência de uma nova cultura onde os valores não desaparecem, transformam-se! Não se trata de um recuo ao estado de selvageria, mas da transição de uma ditadura moralista implacável, onde o prazer era algo quase obsceno, pois imperava uma “moral do sacrifício”: sacrificar-se por Deus, pela família, pelo trabalho, pela pátria..., para uma “ética indolor dos tempos democráticos” [7]. Para ele, estamos diante de uma “ética da responsabilidade”, do dever desonerado da noção de sacrifício, o que expressa o esgotamento da moral do “é proibido proibir”.
Contudo, embora o ideal da “autonomia moral” tenha atingido discussões importantes na hipermodernidade, envolvendo reflexões sobre democracia, liberdade e as redes sociais, surge a necessidade de um contrapeso à tendência individualista de eximir-se das responsabilidades éticas individuais e sociais. Então, um mundo pós-moralista implica, não num mundo desordenado e caótico, mas na irrupção de uma consciência de comprometimento pessoal com uma sociedade mais humanizada. Significa dizer, portanto, que nem a moral cristã, nem o espiritismo estão aptos para, isoladamente, redefinirem o mundo.
Existem, certamente, possíveis contribuições da moral de Jesus e da ética espírita para fomentar essa “consciência de comprometimento”, que não é apenas individual, mas também, social. A perspectiva da reencarnação, quando bem compreendida, poderá favorecer uma consciência antissegregacionista, antifascista, antirracista, e demais formas agressivas e umbilicais de exclusão e opressão dos outros. Não precisamos mais de um moralismo reacionário. Necessitamos, urgentemente, de humanos humanizados, empáticos, comprometidos com uma sociedade mais amorosa e afetiva. O espiritismo, dialogando com os dilemas do século 21, poderá contribuir para uma moral sem moralismo.
O movimento espírita, hegemônico, conservador, tradicionalmente se reveste de ilusões sobre uma suposta “regeneração moral da humanidade”. Os espíritas tradicionais vivem numa espécie de “mundo paralelo” que não dialoga, ou raras vezes o faz, com o mundo real. Lipovetsky resume bem, em sua reflexão filosófica, algo no qual os espíritas deveriam meditar: “Não estamos precisando de exortações à prática da virtude integral, mas de uma inteligência responsável e de um humanismo aplicado, únicos meios capazes de enfrentar os desafios de nossa época”[8].
A discussão sobre o direito da mulher que sofreu estupro, em praticar o aborto assistido pelo Estado, é moralmente condenado nos meios religiosos e espíritas tradicionais. Estamos falando do direito ao aborto num contexto específico de violência sexual, já que não se trata de uma gravidez normal, fruto de uma relação amorosa consensual. O direito ao corpo é um direito moral, não moralista. Não pretendemos aprofundar este assunto, o trazemos aqui apenas para simbolizar a relação assimétrica existente entre moralismo e humanismo. Mais uma vez, reiteramos que não estamos exortando a prática do aborto. Entretanto, entendemos que se trata de um tema que transcende, em muito, o “velho paradigma da moral ocidental”. Normalmente, tal discussão remete para a culpabilidade da mulher que de vítima, passa a ser algoz. O debate sobre questões complexas é interditado nas instituições espíritas, geralmente, com tons de censura.
Presumivelmente, a “posse da verdade”, nos meios conservadores, determina o paradigma da versão de comportamento produzida e aceita, refletindo interesses hegemônicos que pretendem calar ideias e vozes dissonantes. A revitalização dos valores, no mundo atual, permanece um enorme desafio. A moral humanista espírita, em vários sentidos, subsiste marginal, mas o pensamento é – felizmente, transgressor.
* postado originalmente no blog do Ágora Espírita, em 24.03.2024
NOTAS
[1] PIRES, J. Herculano. Curso Dinâmico de Espiritismo. XII. Colaboração interexistencial. p. 74.
[2] Termo desenvolvido por Herculano Pires para significar o processo de vivências do humano-espírito, ora na existência biológica, ora no mundo invisível.
[3] LARA, Eugenio. Breve Ensaio sobre o Humanismo Espírita. p. 59.
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Questão 629.
[5] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Introdução. O objetivo desta obra.
[6] JUNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades. Um Diálogo com as Questões Sociais. p.103.
[7] LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. p.185-187.
[8] Idem. p. 190.
Gostei. Está certo, precisamos refletir de verdade sobre assuntos tão complexos para irmos além de uma moral moralista, que mais engessa do que liberta.
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