Por Jorge Luiz
Um dos grandes bancos privados do Brasil, no passado, exibia em seus produtos e agências a expressão: “Confiamos em Deus.” Com certeza, hoje, ele exibiria “Deus é fiel!”. As expressões soam como uma espécie de garantia, que dá mostra de lealdade em contrato firmado em duas partes, como o significado de fiel encerra; fiador. Para uma sociedade em que as formas de mercadoria perpassam todas as manifestações da vida real, não há nenhuma novidade. A senha - título do artigo – estampa veículos, estabelecimentos sociais, viadutos. A expectativa é que Deus cumpra a sua parte no contrato.
Pesquisa Global Religion 2023(*), (saiba mais) realizada em 26 países para constatar qual se identificaria que a crença em Deus se faz presente. O Brasil empata com a África do Sul, com 89% dos entrevistados, ou seja, 9 em cada 10 brasileiros acredita em Deus. Quando se procurou identificar essa crença, os pesquisados afirmaram – cerca de 70% – que a sua concepção de Deus é a mesma da Bíblia, do Corão e do Torá, entre outros. Aproximadamente 19% acreditam em uma força superior, mas não em Deus como descrito nos textos sagrados.
"São dados que estão de acordo com o histórico de um país onde a religião e a religiosidade têm uma predominância tanto na cultura e na vida cotidiana quanto nas esferas de poder", diz Hélio Gastaldi, diretor de opinião pública da Ipsos no Brasil. Entretanto, somente 76% afirmaram seguir uma religião.
A concepção antropomorfizada desse Deus vem da Idade Média, pois foi lá que ele assumiu feições humanas a partir do próprio imaginário da sociedade, ante a natureza e os fins que buscam alcançar através das massas. Isso foi lá no Império Romano e continua em nossos dias. A inserção da fidelidade (Dt, 32:4), a exemplo do banqueiro, torna-se mantra de fiança, a partir da Teologia da Prosperidade, em decorrência da ideologia do capital que ela expressa. A partir dessa fidelidade, o dízimo e as ofertas se duplicam em prodígios, a favor do fiel. Esse Deus dos pentecostalismos não inserem Jesus, isso o prejudicaria a partir da opção dos pobres pelo Nazareno e são esses pobres e miseráveis que são cooptados pelas igrejas neopentecostais nas periferias das cidades.
O professor e filósofo do direito, Alysson Mascaro, para reforçar essa leitura, escreve:
“O cristianismo católico é o da servidão. O cristianismo reformado, protestante, em geral, é cristianismo que liberta do regime do feudalismo, mas é visceralmente o cristianismo do capitalismo. É o cristianismo progressista porque incentiva a ciência capitalista, mas reacionário e conservador na libertação humana, na justiça social, na igualdade social.”
O que é preocupante nesse cenário não são os fiéis, e os são, na medida em que se tornam objeto de manipulação por líderes religiosos que traficam a fé e a negocia em projetos políticos que, sorrateiramente, estão sendo ensaiados na sociedade brasileira, e em nome da laicidade e tolerância religiosa, vêm sendo permitidos. E isso, lentamente, fomenta o fundamentalismo religioso.
Vi trecho de uma entrevista com um desses líderes religiosos que não cita, em nenhum momento, apesar de provocado pela entrevistadora, em Jesus e amor. Afirmou, contudo, que “ninguém terá coragem de por a mão em um líder religioso que contempla 35 milhões de brasileiros”. Em outras palavras, ele poderá praticar crimes em nome da fé e não será alcançado pelas leis brasileiras. Esse pastor é o Silas Malafaia, que hoje desfia impropérios contra as instituições do Estado. Seu discurso de ódio vem fomentando a discórdia no tecido social da sociedade brasileira. Na entrevista, ele confessou a posse de vários imóveis, inclusive no exterior e o jatinho. Realmente, parece que Deus só é fiel para ele.
Ele não falou em Jesus e nem em amor, porque ele sabe que a busca dos seus fiéis às suas igrejas não são essas. Certa feita, dialogava com um confrade – já desencarnado – acerca de pessoas que perdem veículos, imóveis, vultuosas quantias em dinheiro etc., e, sob a égide desses pastores de conhecimento público, as pessoas continuam as frequentado e fazendo as ofertas anos a fio. Após a interrogação, ele me respondeu: essas pessoas são guiadas pela ganância. Materialismo puro, concluímos. Ele tinha razão. David Hume (1711-1776), filósofo, historiador e ensaísta britânico, considera o seguinte:
“É certo que, em toda a religião, por mais sublime que seja a sua definição verbal que ela ofereça da sua divindade, muitos adeptos, talvez a maioria, procurarão, não obstante, obter favor divino, não por suas virtudes nem por seus bons costumes, únicas coisas que podem ser agradáveis a um ser perfeito, mas por práticas frívolas, por um zelo imoderado, por êxtases violentos ou pela crença em opiniões misteriosas e absurdas.”
Constatam-se nesses dias, nos templos dessas denominações religiosas, práticas esdrúxulas, louvores cheios de excentricidade, letras de músicas que nada tem de contributo para estimular a fraternidade, pelo contrário, fortalece o sectarismo doentio. Tudo converge para as afirmativas de Hume. Veja, só um trechinho da letra dessa música, sob o título, “Deus Tremendo”, de Damares Alves, conhecida nossa: “Esse Deus é tremendo, esse Deus é demais/Quando Ele quer agir/Ele faz o que faz/Faz machado flutuar, faz valente vir ao chão/Nada pode lhe deter quando Ele entra em ação/Ele entra na fornalha e faz o fogo esfriar/Quando tem crente na cova leão tem que jejuar.” Decifre!
Não há espiritualidade nenhuma produzida a partir dessas instituições religiosas, apesar da “fidelidade” de Deus. O que há, realmente, é um contrato em forma mercantil, que só obtém benefícios os pastores, os fiéis ficam “a ver navios”.
Meu Deus! Deus está no controle! Deus é fiel! Afirmativas que demonstram o Ser que é transcendente, como experiência no cotidiano do imanente. Deus participa das coisas mais comezinhas da vida. E o pastor alerta: “Indigne-se com Deus! Revolte-se com Deus, caso ele não cumpra o acordo firmado ante a igreja.” A partir dessa compreensão, surge o fanatismo e o fundamentalismo religiosos, sem esquecer o messianismo, que Deus enviará um messias para libertar seu povo do jugo. A partir disso, o indivíduo renuncia as suas responsabilidades políticas, sociais e espirituais. Aliena-se!
Deus sendo fiel, inspira a cobrança do dízimo, ou mesmo a doação financeira, carros, veículos e até imóveis, pois o retorno estará garantido, se isso não ocorrer é que a fé do crente foi insuficiente.
Tudo isso me faz lembrar o jovem Karl Marx em sua crítica à religião, quando profere a célebre frase que a religião é o “ópio do povo”. O significado de ópio, em um primeiro momento, nos leva à narcotização ou ao alívio de uma dor; lenitivo. Marx entende a religião como um sintoma estrutural de uma sociedade, que faz o homem entrar em um processo de paralisia, ante as dores, o sofrimento e a opressão; “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração do mundo sem coração e o espírito das condições sem espírito.” Nas mesmas reflexões, Marx afirma “que o homem faz a religião e a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o autossentimento do homem, que ou ainda não conquistou a si mesmo ou já se perdeu novamente.”
A religião oferece uma felicidade ilusória, quando o homem na realidade busca uma felicidade real.
Marx, de uma maneira contundente e realista, elabora o momento que imortalizou a sua metáfora: “A miséria religiosa constitui, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estado de coisas embrutecidas. Ela é o ópio do povo.”
Deus, inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas, assim os Espíritos respondem a Allan Kardec, na questão primeira de O Livro dos Espíritos quando indagados sobre o que é Deus. Convergindo com os paradigmas da ciência quântica acerca da realidade da divindade, a concepção espírita possibilita ao espírita uma compreensão alargada de Deus, favorecendo na filosofia espírita os questionamentos necessários acerca do indivíduo e da sociedade. O espírita é um livre-pensador e assim sendo, não permite em nenhum momento grilhões em sua consciência.
O professor e filósofo Herculano Pires (1914-1979) concebe “Deus como Existente, o nosso companheiro e nosso confidente. Não dependemos de intermediários, de atravessadores do mercado da simonia para expor-lhe nossas dificuldades e pedir a sua ajuda. A existência de Deus se prova então pela intimidade natural (não sobrenatural) que com ele estabelecemos em nossa existência.”
Referências:
HUME, David. História natural da religião. São Paulo: Unesp, 2004.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2016.
MASCARO, Alysson. Cristianismo libertador. São Paulo: Comenius, 2002.
PIRES, Herculano J. Concepção existencial de Deus. São Paulo: Paideia, 1992.
¹ Este é um ensaio da perspectiva da religião como fenômeno social.
Mais um brilhante texto do Jorge.
ResponderExcluirValeu, Léo! Jorge Luiz
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