Por Valnei França
“1 Ora disse Jeová a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai para a terra que te mostrarei; 2 farei de ti uma grande nação, e te abençoarei e engrandecerei o teu nome. Sê tu uma bênção: 3 abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei aquele que te amaldiçoar; por meio de ti serão benditas todas as famílias da terra.”(1)
O que é o “transcendente”? O que é o sagrado? O que é o desconhecido? O que são as sombras da noite? O que é o meu medo?
O medo é um sentimento que acompanha o Ser humano em sua jornada evolutiva. Foi ele, o medo, que dota o Humano das forças necessárias para vencer as adversidades, os obstáculos e a garantia de sua espécie, sua sobrevivência. Foram os urros de desespero que, provavelmente, identificaram a existência do perigo, da ameaça. Como na visão de Vygotsky “um bando de gansos correndo e urrando”, apavorados. Nossos antepassados devem ter olhado com medo para a noite, a escuridão, as sombras.
O desenvolvimento da consciência proporciona ao Humano a criação dos símbolos e seus significados. Para combater “a sombra”, “a luz” era a segurança. Com o passar dos tempos aquilo que gerava medo, incompreensões, tornaram-se sagrados. Uns com referência ao bem (segurança), outros ao mal (medo). Assim, a comunicação, a interpretação do desconhecido passou por um processo de sacralização*.
No início deste texto consta uma tradução da Bíblia “do como” Deus (Jeová) orienta Abraão de sair da Mesopotâmia e ir ao encontro da “Terra Prometida”. A sociedade ocidental, principalmente os herdeiros “judaico-cristã” mantém em seu “ideário coletivo” a questão metafórica e até de orientação prática, cotidiana, da questão “Terra Prometida”.
Lembrando do desconhecido, e da passagem para o “sagrado”, podemos buscar um entendimento desta persistência. Na jornada da evolução social do Humano, surgem os “intérpretes” do sagrado, àqueles que vêm a se tornar os intermediários entre os simples mortais e o sagrado e, por extensão, aos Deuses. Esta relação também é conhecida como transcendência**. Estes intermediários, não apenas criam símbolos (materiais ou não), rituais, mas também “simbolizam” eventos cotidianos tornando-os sagrados, especiais, a exemplo das colheitas em relação às intempéries. Com o passar dos tempos estas questões vão sendo introjetadas às pessoas e passam a fazer parte da “memória coletiva” desde os mais pequenos povoados – grupos sociais, até as cidades densamente populosas. O sagrado que antes se atinha, principalmente, às questões religiosas, regendo e moldando o cotidiano, se amplia a outras relações sociais da sociedade. Como Exemplo a “política”. Desta maneira, facilitou-se a incorporação no ideário dos grupos sociais as várias formas da metáfora da “Terra Prometida”.
Na Idade Média, mesmo não tendo alfabetizados como maioria e sim como raridade, função ou classe social, buscou-se a “Terra Prometida”. Inicialmente, o “Paraíso” foi a forma utilizada para conformar as pessoas condicionando-as na subjugação diária para fins de obtenção da “entrada ao paraíso”. As pessoas passaram a aceitar politicamente sua condição de inferior. Este edifício*** foi construído ao longo de quase mil anos.
Além disto, as novelas de cavalaria preenchiam o “ideário coletivo” e nele os seus salvadores, a exemplo de “El Cid”(5). Um deles, o “sebastianismo”(6) sobrevive à formação do Estado brasileiro e vigora até os dias de hoje. O resultado desta espera por um salvador ou para uma vida (na Terra) sem sofrimentos é uma sociedade confusa e, nela, a existência de vários processos de alienação.
“Olha lá vai passando a procissão/Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando/Acreditam nas coisas lá do céu
As mulheres cantando tiram o verso/Os homens escutando tiram o chapéu
Eles vivem penando aqui na Terra/Esperando o que Jesus prometeu”
Composição: Gilberto Gil
Acreditar em uma vida melhor no futuro, uma Terra onde a felicidade não é apenas possível, mais acima de tudo plena, vai fazendo parte de sonhadores como Tomas Morus, Karl Marx, Antônio Conselheiro, Bakunin, a Coluna Prestes, os Monges da Lapa (PR), de filmes contrapondo ambas as realidades (felicidade e sofrimento). Somos alimentados cotidianamente da metáfora de uma “Terra Prometida” e isto possibilita o surgimento, também, de personagens fanáticas oferecendo a felicidade plena.
“Essa efervescência, inconsciente a princípio, não passando de vago desejo, de aspiração indefinida por alguma coisa melhor, de certa necessidade de mudança, traduz-se por uma surda agitação, depois por atos que levam às revoluções sociais…” (Kardec. A GÊNESE) (7)
Essa alienação perdura nas relações sociais anulando parte da condição de sujeito quanto à consciência nas diversas situações e condições em sua vida. Isto explica, em parte, a posição política, as escolhas, de boa parte dos espíritas em eleições no Brasil. As aspirações são díspares. É comum verem-se opositores em políticas torcerem, sofrerem, por um mesmo time de futebol, de vôlei… Como diz José de Souza,
“Porque a falsa consciência não é o dom negativo de idiotas culturais. A falsa consciência é a expressão de limites verdadeiros na compreensão da realidade e dos consequentes desafios à sua superação prática” (Martins, 2014) (8).
Sem cair nos chavões de “progressistas e conservadores” podemos perceber que as escolhas fazem parte de determinadas crenças quanto ao futuro, a sua espera. Destaco a espera para analisar nossos desejos por uma “Terra Prometida”.
“… Em segundo lugar, se a nossa época está designada para a realização de certas coisas, é que estas têm uma razão de ser na marcha do conjunto”. (Kardec. A GÊNESE) (7).
Em essência, a Doutrina Espírita não é determinista, pois tem no livre-arbítrio um exemplo clássico desta compreensão. Apesar disto, ainda sobrevivem várias determinações à revelia da própria Doutrina causando não dúvidas e sim certezas, das mais díspares possíveis, quanto às atuações dos Humanos na presente reencarnação à espera do prometido por Deus, em nosso caso o “Mundo de Regeneração”. Esta certeza do advento de uma possível reclassificação de nosso Planeta está conformando as ações das pessoas que passam mais a considerar a mudança de tipo, categoria, classificação do Planeta, do que com as condições da população terrestre nesta mesma perspectiva.
Ora, quem serão os expatriados quando o Planeta ascender? Haverá um privilégio de classe? De sangue? Ao olharmos o início do parágrafo anterior, em negrito, numa leitura aligeirada dá a entender que “certas coisas” foram designadas por Deus e que devemos nos subjugar a elas. Isto é inércia da vontade. Todavia, o texto (A Gênese) nos orienta a olharmos não uma ou outra parte e sim o todo, onde percebemos os mais variados ritmos de desenvolvimento sócio moral dos terrestres. Então o que esperar dos Espíritas? Ou ainda, como o espírita espera a ascensão do Planeta?
No Brasil, o Espiritismo sofre metamorfoses a partir de interações com as diversas culturas aqui presentes. É neste bojo de variadas culturas que o Espiritismo religioso ou não, seus adeptos, vai adquirir “verdades”, crendices, de outras religiões. Em parte, isto explica o quê de ações similares ao “messianismo” em nosso meio. Além disto, boa parte dos espíritas não compreenderam muito bem o seu papel na Sociedade Contemporânea. Quando se reforça a ação com base na caridade, estes não a veem como prática diária e muito menos extensiva às outras necessidades das pessoas fora comida e roupa, como sua cidadania, por exemplo. Muitos seguem um arremedo do lema dos “três Mosqueteiros” adotando “cada um por si e eu só faço a minha parte”.
A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas sob a condição de ser bem empregada. Se todos os homens que a possuem dela se servissem de conformidade com a vontade de Deus, fácil seria, para os Espíritos, a tarefa de fazer que a Humanidade avance. Infelizmente, muitos a tornam instrumento de orgulho e de perdição contra si mesmos (Kardec. O EVANGELHO). (9)
São muitas as interrogações possíveis de serem feitas a partir destas constatações, todavia ficarei na atividade de “dar sopa”. É intrigante o fato de se perceber duas perspectivas numa mesma atividade, enquanto uma grande maioria se atém a dar sopa aos necessitados e, nisto, satisfazem sua “obrigação de caridade”, ou ego, outros vão mais além. Não esquecendo da sopa que é importante para a condição de vida, este outro segmento espírita busca suprir outras necessidades destes atendidos pela sopa. Acolhendo, prestando uma escuta pró ativa, proporcionando a complementação de suas cidadanias providenciando documentação ou articulando com entidades a fins para elaboração de leis que propiciem mais um degrau de cidadania, criando Escolas ou atividades instrutivas, enfim, construindo novas cidadanias. Não estou aqui menosprezando aqueles que participam somente da entrega de sopa, pois esses trabalhadores não se furtam às intempéries do clima, enfrentam a garoa, a chuva, o frio e os olhares de desdém daqueles mais afortunados que passam ao largo menosprezando a atividade, esta que é linda. A intenção é seguir questionando “Moisés”, em nosso caso da caridade “espíritas! O que falta?”
*Sacralização. “É um processo pelo qual algo ou alguém é elevado a um status divino ou reverenciado como sagrado. A sacralização pode ocorrer em diferentes contextos, como na religião, na cultura ou até mesmo em situações cotidianas”. (2)
**Transcendência. O conjunto dos atributos de Deus em relação ao mundo e aos seres por Ele criados, segundo os teístas”(3)
***Edifício 4 FIG Projeto mental cuidadosamente elaborado ao qual se dedicou muito empenho(4).
REFERÊNCIAS
Figura: A imagem provém do Wikimedia Commons, um acervo de conteúdo livre da Wikimedia Foundation que pode ser utilizado por outros projetos, Autor GualdimG. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Mois%C3%A9s_fazendo_brotar_%C3%A1gua_do_rochedo,_Cavaleiro_Faria_11.jpg>
(1) Tradução Brasileira da Bíblia. Gênesis/XII. Acessado em 20/04/2024 <https://pt.wikisource.org/wiki/Tradu%C3%A7%C3%A3o_Brasileira_da_B%C3%Adblia/G%C3%Aanesis/XII#12:7>
(2) Sacralidade. Acessado em 20/04/2024. <https://www.dicio.com.br/sacralidade/#:~:text=Significado%20de%20Sacralidade,(origem%20da%20palavra%20sacralidade).>
(3) Transcendência. Acessado em 23/04/2024. <https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=transcend%C3%Aancia>
(4) Edifício. Acessado em 20/04/2024. <https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=edif%C3%Adcio>
(5) COELHO, Luiz Filipe Alves Guimarães. A LENDA CASTTLHANA: LEITURAS DE EL CID. Acessado em 20/04/82024. <https://revistas.ufpr.br/clio/article/download/40279/24602#:~:text=Citaremos%20aqui%20os%20principais%20documentos,13).>
(6) Em 4 de agosto de 1578, Sebastião I, de Portugal, morreu na batalha de Alcácer-Quibir. Assim nasceu o sebastianismo, um movimento que profetizava o retorno do monarca morto para conduzir a nação. O mito se arraigou no Nordeste brasileiro e adquiriu com os séculos diversas modulações. Acessado em 20/04/2024 <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/08/25/internacional/1408998652_458747.html>
(7) A. Kardec. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo > As predições > Capítulo XVIII — São chegados os tempos > Sinais dos tempos. Kardecpedia. Acessado em 23/047/2024. <https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/888/agenese-os-milagres-e-as-predicoes-segundo-oespiritismo/4294/as-predicoes/capitulo-xviii-sao-chegados-os-tempos/sinais-dos-tempos>
(8) Martins José de Souza. Uma Sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto, 2014.
(9) KARDEC, A. O Evangelho Segundo o Espiritismo. [tradução de Guillon Ribeiro da 3. ed. francesa, revista, corrigida e modificada pelo autor em 1866]. – 131. ed. 2. imp. (Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.
SUGESTÕES DE
LEITURA
- Santos Fortes, de Leandro Karnal e LuizEstevam de O. Fernandes. Rio de Janeiro, editora Anfiteatro, 2017.
- As Origens do Sagrado – Viagem espiritual à tradição ocidental, de Anne Bancroft. Trad. M. F. Gonçalves de Azevedo. Ed. Estampa. Lisboa, 1990.
- O que faz o brasil, Brasil? De Roberto DaMatta. Ed. Rocco. Rio de Janeiro, 1986.
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