Por Jorge Luiz
Para o teólogo alemão-estadunidense e filósofo da religião, Paul Tillich (1886-1965), Tertuliano (160-240), prolífico autor das primeiras fases do cristianismo, o primeiro a produzir obra literária em latim, foi quem, originalmente, criou a fórmula fundamental para expressar a cristologia e a trindade. A fórmula de Tertuliano, segundo Tillich, o permitiu entrar para os credos latinos da Igreja Católica Romana: “Preservemos o mistério da economia divina que dispôs a unidade em trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, não em essência, mas em grau, não em substância, mas em forma.”
Estudando com Tillich, ele faz entender que concepção trinitária acima, apesar de falar da unidade, nega-a em essência, portanto, não a considera triteísta.
Os quatro primeiros Concílios chamados de ecumênicos pela Igreja – Niceia e o Constantinopolitano I; Éfeso e Calcedônia –, foram determinantes para a formulação dos seus dogmas.
O imperador Constantino começou a se interessar pelas questões eclesiásticas ao enxergar que a Igreja é instrumento fundamental do seu governo. Os concílios vieram para promover a expressão da fé e da disciplina, além da sustentação, do bem-estar e da unidade do Estado. O cristianismo, que era perseguido, começou a perseguir, com a conversão da aristocracia e da classe média romana. Os pagãos perseguidos, quando se tornavam cristãos, não adotavam o catolicismo, mas sim o arianismo, movimento cristão liderado por Ário, presbítero de Alexandria que negava Jesus como Deus. Esse movimento se constituiu como principal desafio para a Igreja Católica no século IV. Em resposta, a Igreja Católica concebeu a condição trinitária da divindade, em Pai, Filho e Espírito Santo.
Os desdobramentos do conflito católico com o arianismo dominam amplamente a história política, eclesiástica e doutrinária do Concílio de Niceia (325), até Constantinopla I (381). Nesse ano, sob as bênçãos do Imperador Constantino, a doutrina católica da Santíssima Trindade, produzida por Eusébio de Cesareia, (disposta em três artigos principais: Pai, Filho – naturalmente mais amplo – e Espírito Santo), tornou-se profissão de fé e se universalizou. Contudo, a Trindade nunca foi unanimidade na Igreja. A Igreja, para se universalizar, precisaria argumentar o Espírito Santo nos Evangelhos. Léon Denis (1846-1927), sábio pensador francês, assim se reporta: “Depois da proclamação da divindade do Cristo, no século IV, depois da introdução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século VII, muitas passagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que exprimissem as novas doutrinas (Ver João, I, 5,7). “Vimos, diz Leblois,cxli na Biblioteca Nacional, de Santa Genoveva, do mosteiro de Sannt-Gall, manuscritos em que o dogma da Trindade está apenas acrescentado à margem. Mais tarde foi intercalado no texto, onde se encontra ainda.”
Karen Armstrong é uma autora britânica, especialista em temas de religião, em particular sobre judaísmo, cristianismo e islamismo, referindo-se a William Whinston (1667-1752), teólogo, historiador e matemático inglês, diz: “Em 1745, ele publicou uma versão do Novo Testamento da qual eliminara todas as referências à Encarnação e à Trindade, doutrinas que, afirmava ele, haviam sido impingidas aos fiéis pelos padres da Igreja.”
Destaque necessário se fazer que a tradução da Bíblia que deu contornos ao cristianismo no Ocidente é a Vulgata, traduzida do grego para o latim, imposta pelo Papa Damaso e confiada a São Jerônimo em 384, diante das tantas querelas que agitavam o mundo cristão com perturbações significativas ao Império. Denis citou o texto de abertura de São Jerônimo, após concluída. Digno de nota:
“Da velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, coloque-me como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo, e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. (...) Qual de fato, o sábio e mesmo o ignorante que, desde que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo como o que está habituado a ler, não se ponha a clamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos livros antigos.”
Assentamentos mais contundentes acerca da temática são consagrados por Carlos Torres Pastorino (1910-1980), ex-padre, radialista, professor de latim e grego no Instituto Ítalo-Brasileiro, exatamente por ser um poliglota e dominar os idiomas do latim e do grego. Pastorino esclarece que no original grego não há o artigo, o que demonstra a indeterminação: “UM espírito santo” e não “O” Espírito Santo. Fica evidente que, quando a palavra era determinada, empregava-se o artigo definido “ho, he, to”. Quando era indeterminada (caso em que se emprega o artigo indefinido), o grego deixa a palavra sem artigo.
A palavra pneuma, que significa no original grego sopro ou Espírito, é utilizada 354 vezes no Novo Testamento (N.T.) e toma diversos sentidos. Pode se tratar de ESPÍRITO como o SANTO, designado o Amor-Concreto, base da essência de tudo que existe; seria o correspondente de Brahman, do Absoluto. Aparece com esse sentido, diz Pastorino, indiscutivelmente, seis vezes (Mt, 12:31, 32; Mc, 3:29, luc, 12:10; Jo, 4:24; 1ª Cor 2:11).
Pastorino é absoluto quando admite que se pode encontrar no N.T. espíritos em muitos graus evolutivos, desde os mais ignorantes e atrasados (akátharton), enfermos (ponêron) até os mais evoluídos e santos (hágion), como estão didaticamente estudados na questão nº 100, de O Livro dos Espíritos – Escala Espírita). Pastorino esclarece, na prática, o emprego da palavra pneuma no N.T.:
a. como Espírito encarnado, 193 vezes;
b. evoluído ou puro, 107 vezes;
c. involuído ou não purificado, 39 vezes;
d. “espírito” no sentido abstrato de “caráter”, 7 vezes;
e. no sentido de sopro, 1 vez;
f. Daimôn (1 vez) ou Daimônion, 55 vezes, refere-se sempre a um espírito familiar desencarnado, que ainda conserva sua personalidade humana além-túmulo.
g. quando se refere a uma obsessão, com o verbo daimonizesthai, que aparece 13 vezes, só é empregado pelos evangelistas.
Na tradução do grego para o latim, com o propósito de fortalecer o dogma da Trindade, a expressão “O” Espírito Santo foi considerada em detrimento do seu sentido original, como explica Pastorino. Essa bifurcação é de fundamental necessidade à sua compreensão, pois deteriora os fundamentos básicos dos cultos pneumáticos que o apóstolo Paulo disciplina em sua I Carta aos Coríntios, capítulo 12, que são as práticas dos espíritas nos dias atuais. Passa a ser o principal aspecto que definia a ortodoxia e a heresia para a Igreja Católica. Leia-se Tillich e entender-se a ordem de Paulo: “(...) que ele (Paulo) já encontra dificuldades com os portadores do espírito porque produziam desordem. Assim, acentuou a necessidade da ordem ao lado do espírito. Na época dos pais apostólicos, as experiências espirituais de êxtase (falar em línguas) tinham desaparecido. Eram consideradas perigosas.”
Paul Johnson (1928-2023), jornalista inglês, escreve em seu best-seller, que a Igreja transfere para ela, pelo dom do Espírito Santo: “(...) a Igreja eliminava os que afirmavam capazes de realizar milagres e falar com línguas. Desenvolvera-se uma teoria alternativa. Nas palavras de Gregório I: ‘agora, meus irmãos, vendo que já não se operam tais sinais, vocês já não acreditam mais?’ – resposta: não é assim. Pois a Santa Igreja age agora no espírito, assim como os Apóstolos, então, agiam no corpo. (...) E, de fato, esses milagres são maiores por seres espirituais: tanto maiores, já que elevam não os corpos, mas as almas dos homens.”
Contundente é a análise de Emil Brunner (1889-1966), um dos maiores teólogos do século XX, ligado à Igreja reformada Suíça, quando conclui: “(...) A doutrina do Deus trino, que é o centro do pensamento acerca de Deus, é a causa da mais séria e ferrenha rejeição por essas duas religiões (Judaísmo e Islamismo) monoteístas. E a doutrina da trindade que também separa o cristão de todas as ideias filosóficas, especulativas e racionalistas de Deus.”
A mediunidade com Jesus, disciplinada em O Livro dos Médiuns, na opinião do Espírito Emmanuel, condiciona o Espiritismo como o Cristianismo Redivivo. Nessa obra básica estão consideradas todas as expressões da mediunidade, inclusive a “poliglota”, na classe dos médiuns falantes, atestada pelas pesquisas científicas com a xenoglossia. Allan Kardec, considerado pelo seu discípulo Camille Flamarion como o bom-senso encarnado, quando analisa os médiuns falantes não tece nenhuma consideração ao médium poliglota, naturalmente por ser inócuo e improdutivo para as considerações morais a que se propõe o Espiritismo.
Sob a ótica espírita, essas manifestações nada têm de especial, pela jactância que os praticantes sentem, como ungidos pelo Espírito Santo. Na realidade, podem ser, desde a ignorância (do verbo ignorar), obsessão, misticismo ou fraude; cristianismo? Nada há o que se considerar.
Haraldur Nielsson (1868-1928), o grande, o justo e iluminado teólogo protestante de Reykjavik, afirma: “O Espiritismo tem sustentado, desde o seu advento, a exatidão da concepção do Novo Testamento.”
Os espíritas necessitam discutir essas questões de forma clara e contundente em suas reuniões públicas, frente aos riscos do “cristianismo reacionário” que se lastreia no Brasil, com perspectivas negativas para a vivência cristã. Crimes estão sendo cometidos sob o amparo da laicidade do Estado e a tolerância religiosa.
Deixo vocês na companhia do apóstolo Paulo (Ap, 22:18-19):
“Eu, a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro; e se alguém tirar qualquer cousa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida, da cidade santa das cousas que se acham escritas neste livro”.
Referências:
ALBERIGO, Giuseppe. História dos concílios ecumênicos. São Paulo, 1995.
ARMSTRONG, Karen. A bíblia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BRUNNER, Emil. O escândalo do cristianismo. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
DENIS. Léon. Cristianismo e espiritismo. Brasília: FEB, 1992.
FILHO, Américo N. D. Razão e dogma. São Paulo: O Clarim, 1995.
HILGARTH, J. N. Cristianismo e paganismo. São Paulo: Masdras, 1969.
JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de janeiro: Imago, 1976.
KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. São Paulo: EME, 2001.
NIELSON, Haraldur. O espiritismo e igreja. São Paulo: Correio Fraterno, 1983.
PASTORINO, Carlos T. Sabedoria do evangelho – vols. 1 e 4. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1964.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: Aste, 2007.
Texto muito bem desenvolvido , com muitas citações.
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