sábado, 8 de junho de 2024

ESPIRITISMO E NECROPOLÍTICA

 


           Por Jorge Luiz

         A tragédia anunciada que ocorre no Rio Grande do Sul traz muitos elementos que estão sendo discutidos, embora de uma forma velada, sem uma participação efetiva da mídia corporativa, que evidenciam as negligências dos dirigentes estadual e municipais. O próprio governador do Estado, Eduardo Leite, foi sincero ao afirmar que “priorizou a agenda fiscal às questões de natureza climática.” Não muito diferente foram as posturas governamentais diante da pandemia de COVID-19, os jovens negros precocemente mortos na periferia. Achille Mbembe filósofo, cientista político, historiador, intelectual e professor universitário camaronês, define essas decisões, amparadas por discursos que guardam alguma ordem como necropolítica, que é a licença para matar. Um dos piores exemplos de biopoder, no momento, é o genocídio que ocorre em Gaza, na Palestina.

            Os estudos de Mbembe vão além das definições de biopoder ou biopolítica de Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês, onde o biopoder é definido de duas formas: consiste, por um lado, em uma anátomo-política do corpo e, por outro, em uma biopolítica da população. A anátomo-política refere-se aos dispositivos disciplinares encarregados de extrair do corpo humano sua força produtiva, mediante o controle do tempo e do espaço, no interior de instituições, como a escola, o hospital, a fábrica e a prisão. Por sua vez, a biopolítica da população volta-se à regulação das massas, utilizando-se de saberes e práticas que permitam gerir taxas de natalidade, fluxos de migração, epidemias e aumento da longevidade. O capitalismo transforma-os em mecanismos de morte, tomando em um contexto de verticalidade a capacidade de produzir e consumir, que o próprio Foucault rotula de “racismo”.

            Mbembe explica em suas conclusões: “Tentei demonstrar que a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Além disso, propus a noção de necropolítica e de necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”.

            Esse exemplo é bem notado na tragédia do Rio Grande do Sul, quando se elege uma agenda fiscal em detrimento da proteção das vidas, pois a população no entorno das vias aquíferas se constitui de pobres que não contam na economia do neoliberalismo. A questão é que as chuvas tomaram uma dimensão nunca vista e alcançou, inclusive, classes melhores situadas nessa verticalidade, notadamente, a cidade de Porto Alegre.

            Têm-se uma ideia, de tanto os líderes mundiais falarem, que realmente as questões climáticas estão na agenda das Nações. Pura ilusão! A realidade é que já estamos operando no vermelho e perto de alcançar um caminho sem volta. Interessante notar, segundo os pesquisadores, que o Brasil já tem a capacidade de triplicar a produção do agro, sem desmatar, somente utilizando a tecnologia de ponta já disponível. A ganância do homem, no entanto, é maior que a racionalidade.

            O negacionismo, que é uma atitude de se ir contra as evidências ou até mesmo paradigmas reconhecidos pela ciência, na realidade é um eufemismo do exercício do biopoder. O negacionismo e o obscurantismo, principalmente sobre  as questões climáticas, são as principais bandeiras da ultradireita mundial, em especial a do Brasil, que ficou no poder recentemente.

            Nadir Lara Júnior e David Pavón-Cuéllar(1), na obra Psicanálise e Marxismo, afirmam:

“Uma das artimanhas dos Estados capitalistas é justamente transformar o sofrimento de cada sujeito numa forma de fraqueza individual. A depressão, a bipolaridade, a esquizofrenia etc.... se tornam um predicado para os fracos e incapazes que não souberam prosperar e empreender. A esse sujeito cabe o lugar da masmorra moderna dos manicômios e das camisas de força atualizadas nos psicotrópicos que muitas vezes anestesiam a pessoa da própria existência humana. (...) Tornar a existência humana uma obsolescência se torna o objetivo do sistema capitalista.”

            Onde estão esses indivíduos? Onde residem? Como sobrevivem? Perderam a capacidade de produzir e consumir. Esses são os alvos da necropolítica.

Essa fase que o Planeta atravessa está sendo estudada como um novo intervalo de tempo geológico, iniciando-se de uma metáfora que na realidade já se consolidou, a partir de critérios adequados, formalmente como antropoceno, que de fato tem o seu início desde a Revolução Industrial.

            Os geólogos dividem a escala do tempo geológico em intervalos de tempo de 4,5 bilhões de anos da Terra em uma hierarquia de éons, eras, períodos, épocas e idades.

            Ian Angus é um ativista ecossocialista canadiano que afirma:

“Vivemos no período Quartenário, a mais recente subdivisão da era Cenozoica, que começou há 65 milhões de anos. O Quartenário, por sua vez, divide-se em duas épocas: o Pleistoceno, que começou há 2,58 milhões de anos, e o Holoceno, que começou 11.700 anos atrás e se estende até o presente.”

            Essas questões não passaram despercebidas por Allan Kardec. Na questão n.º 705, de O Livro dos Espíritos (L.E.), ele indaga aos colaboradores espirituais sobre o desequilíbrio da capacidade de suporte da Terra com as necessidades humanas. Eis a resposta:

“– É que o homem a negligencia, ingrato, e, no entanto, ela é uma excelente mãe. Frequentemente ele acusa a Natureza pelas consequências da sua imperícia ou da sua imprevidência. A terra produziria sempre o necessário se o homem soubesse contentar-se. Se ela não supre todas as necessidades é porque o homem emprega no supérfluo o que se destina ao necessário. (...)”

            Os espíritas vêm fazendo apologia à transição planetária, justificando todo o gênero de calamidades sociais que intercorrem no mundo, a exemplo das enchentes no Rio Grande do Sul. Observe-se que nessa tragédia foram desprezados inúmeros relatórios que sinalizavam acerca de medidas que deveriam ser observadas no que diz respeito às queimadas na Amazônia que, inclusive, a necropolítica esteve presente com a morte de centenas de povos originários.

            É de fundamental importância que se corrija o hábito de tudo se debitar todas as tragédias coletivas às vidas passadas, por não ter o alcance do que é a morte na visão espírita. Os Espíritos nas questões n.º 738 e 738- “a” (L.E.), quando indagados sobre os homens bons que são vítimas nesses eventos, juntamente com os maus, eles respondem:

“ – Se considerássemos a vida no que ela é, e quanto é insignificante em relação ao infinito, menos importância lhe daríamos. Essas vítimas terão noutra existência uma larga compensação para os seus sofrimentos, se souberem suportá-los sem lamentar.”

            Há, no imaginário do movimento espírita, o mundo de regeneração  concebido pela graça divina, em detrimento da desgovernabilidade do homem em suas condutas para com o próximo e a Natureza. Não há data limite como amplamente anunciado entre os espíritas. Estamos em permanente transição, pois o progresso é lei imperativa, conforme está descrito na terceira parte de o (L.E.).

            Não há solução climática no contexto do modo de reprodução do sistema capitalista, isso é inquestionável. Ou se muda, ou se muda o sistema. A ecologia é antissistêmica.

            Indiscutivelmente, Karl Marx (1818-1883), revolucionário socialista alemão, foi quem mais criticou o sistema capitalista, sempre atual, e as questões ecológicas também são aventadas em seus escritos. Veja-se:

“O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é fonte dos valores de uso (que são, de qualquer forma, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, que não é nada além da expressão de uma força natural, a força de trabalho do homem.”

            Trabalho e Natureza, todos precarizados pela ganância do homem, para o enriquecimento de poucos.

            Murray Bookchin (1921-2006), libertário norte-americano e pioneiro no movimento da ecologia, enxerga que toda essa catástrofe humana na relação com a natureza, surge na realidade, bem antes do capitalismo com a mentalidade estruturada em torno da hierarquia e da dominação, em que a dominação do homem pelo homem originou o conceito da dominação sobre a natureza como destino e necessidade da humanidade. Brookchin, sugere uma “sociedade ecológica” sem a hierarquização e sem classes que deverá eliminar mesmo o conceito de dominação da natureza.

            Allan Kardec, inspirado pelos fundamentos que inspiraram a Revolução Francesa, escreveu um ensaio sobre Liberdade, Igualdade e Solidariedade, onde ele reflete sobre a dinâmica de uma sociedade sobre os auspícios desses princípios. Diz ele:

“Liberdade, igualdade e fraternidade, três palavras que são por si sós o programa de uma ordem social, que realizaria o mais absoluto progresso da Humanidade, se os princípios que representam pudessem receber inteira aplicação.”

O mesmo Kardec,  em Credo Espírita, assinala: A questão social não tem, pois, por ponto de partida a forma de tal ou qual instituição; ela está toda no melhoramento moral dos indivíduos e das massas. Aí é que se acha o princípio, a verdadeira chave da felicidade do gênero humano, porque então os homens não mais cogitarão de se prejudicarem reciprocamente.

Urge problematizarmos essas questões nos espaços espíritas. Tenho insistido nesses termos. O mundo de transição exige que o espírita aja no mundo de acordo com a sua consciência, agora mais lúcida e mais ampliada acerca da vida na Terra e seus desdobramentos após a morte. Não se pode continuar a demandar nos espaços espíritas, como é praxe, uma legião de pedintes das bênçãos do céu sobre os auspícios do passe e da água fluidificada. A vida pede mais que isso.

A vida do Espírito, enquanto encarnado, está ativa pelo Hálito Divino, fecundada pela imortalidade e das vidas sucessivas e somente, a partir dele, deve se extinguir.

Os bem-aventurados do Nazareno são alvos do necropoder. Paradoxo fúnebre!

 

 

Referências:

AGNUS, Ian. Enfrentando o antropoceno. São Paulo: Boitempo, 2023;

BOOKCHIN, Murray. Ecologia social e outros. Rio de Janeiro: Achiamé. 2010;

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.

_____________. Obras póstumas. Brasília: Feb, 1987.

MARX, Karl.  Crítica ao programa de Gotha. E-book.

MBEMBE, Aquille. Necropolítica. São Paulo: N-1edições, 2018.

TRIGUEIRO, André. Espiritismo e ecologia. Rio de Janeiro: Feb, 2009.

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692016000300003

(1)       Psicólogo e doutor em Psicologia Social pela PUC (SP); doutor em Psicologia pela Universidade de Santiago de Compostela e doutor em Filosofia pela Universidade de Rouen.

 

5 comentários:

  1. Leonardo Ferreira Pinto9 de junho de 2024 às 14:03

    Texto fluido, que me trás luz a muitas dúvidas e angústias. Muito bem fundamentado com pesquisas a diversidade de autores.

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  2. Gratidão, Léo! Jorge

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  3. Belo e reflexivo artigo! Parabéns, pela lucidez meu amigo!

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  4. Muito bom, excelentes considerações e necessário chamamento à conscientização dos espíritas. Doris Gandres.

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  5. Gratidão ao Alexandre e a Doris pelo enriquecimento das ideias aqui assentadas. Jorge

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