Por Jorge Luiz
As últimas eleições ao cargo principal do Brasil fizeram emergir um fenômeno sociopolítico que, até então, desenvolvia-se de forma sub-reptícia e tendo como pano de fundo o cristianismo. Estou me referindo à Teologia do Domínio, que teoriza a tomada do espaço público pela Igreja, defendida por algumas das principais lideranças neopentecostais, até então sem muito aprofundamento para o vulgo.
O que vem a ser a Teologia do Domínio?
Quase desconhecida no Brasil, tem o historiador e professor de literatura comparada, João Cezar de Castro Rocha, como seu principal pesquisador após o crescimento da extrema-direita no mundo e o discurso de ódio das igrejas neopentecostais no Brasil. Ele afirma que sua origem vem da literalidade da interpretação do livro de Gênesis 1:28, quando Deus, após a criação do homem e a mulher, “abençoou-os e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra, e sujeitei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre todas as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.” Fica claro que o crescimento e multiplicação são os neopentecostais e o domínio será deles, obviamente.
O pastor Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), lançou, em 2008, a obra literária Plano de Poder, onde ele elabora diretrizes que dialogam com a Teologia do Domínio. No capítulo 3, ele dedica a “A retomada de um projeto divino”, sofismando hermeneuticamente, e afirma: “Quanto tempo levará ainda para que Deus realize o Seu grande sonho de nação? Quando todos os que se dizem Seus estiverem conscientizados, dispostos e disponíveis a isso? Depois disso, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim”. (Is:8)
Em entrevista ao portal do Instituto Conhecimento Liberta (ICL), Castro Rocha (saiba mais), faz a citação de uma obra de Gary North (1942-2022) escritor estadunidense, principal coluna do dominionismo. Leia-se:
“A tática adequada deve ser baseada em uma estratégia de longo prazo. Eis a tática: usar a versão dos humanistas de liberdade religiosa, baseada no mito da neutralidade, para ganhar tempo. Mas não nos deixemos enganar. Estamos ganhando tempo para reconstruir o mundo. Essa reconstrução envolverá, em última análise, um retorno à lei bíblica abrangente, em todas as esferas da vida. Quando isso acontecer — não por meio de uma revolução, mas pela pregação constante do evangelho e pelo autogoverno progressivo de cidadãos cristãos cumpridores da lei bíblica — a nova ordem social retornará à doutrina da liberdade cristã estabelecida no Antigo Testamento (...). Estamos ganhando tempo, não para perpetuar o mito da neutralidade, mas para subvertê-lo, já que hoje em dia ninguém acredita de fato nele.”
Para Castro Rocha, se não houver reação, em 10 ou 15 anos não se terá mais democracia no mundo.
Para os dominionistas, somente uma liderança evangélica pode ser instrumento para cumprimento da palavra bíblica, por isso, o ódio ao outro, o extermínio do diferente, para eles, na realidade, é uma “guerra santa”. Quem não se lembra da ex-primeira dama, Michele Bolsonaro, em um dos seus apelos de campanha afirmando que a eleição em que seu marido participava era uma “guerra espiritual”? A própria Michele admitiu que havia demônios, pacto com demônios, eles estavam presentes no Planalto, e o Senhor ungiu o 'mito', o 'Messias', que foi batizado no Rio Jordão para libertar o povo. O diabo é figura importante na Teologia do Domínio. Com essa compreensão, há uma guerra declarada com outros pensares religiosos. O que é real nisso tudo é como esses grupos se legitimam a elaborar esse projeto de poder. Em outra direção, os centros espíritas e os centros de umbanda são atacados sem sequer saber os motivos e como se defenderem.
Fica explicado aqui o militarismo forte na composição do governo de Jair Bolsonaro e a atual militarização nas igrejas evangélicas, através do proselitismo religioso. É comum se ouvir dos pastores durante o culto expressões como ‘estratégia’, ‘guerra’, ‘soldado’, ‘munido de armas para combater’. Recentemente, a confreira Ana Cláudia Laurindo escreveu um artigo sobre uma igreja que se denomina “Tropa de Cristo”, com um vídeo sobre adolescentes sendo treinados como militares.
A situação é mais grave que se possa imaginar a considerar iniciativas que buscam esses objetivos circundarem-se no campo religioso, como se enxerga. Leia-se que Gary North se utiliza de preceitos institucionais das democracias; laicidade do Estado e a liberdade de culto. Aqui não cabe tolerância religiosa, e nem tampouco a laicidade do Estado, e mesmo que fosse, a tolerância tem limites. André Comte-Sponville, filósofo materialista francês, admite: “Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e se não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados, e com eles a tolerância.” Isso, no entanto, não dá o direito de se estigmatizar ou hostilizar os evangélicos, que na realidade, ignoram essa realidade e servem de “massa de manobra” para negociatas de apoio político às legendas de extrema-direita. A questão se situa no campo das ideias e elas devem ser confrontadas.
Com a eleição do extremista de direita Jair Bolsonaro e o seu consórcio com os evangélicos, a religião e a política partidária conviveram conjugalmente e tivemos quatro anos em que o Brasil funcionou como laboratório para esses fins, inclusive atraindo instituições norte-americanas, que inclusive vieram se instalar aqui, como o Capitol Ministries, estabelecendo seu escritório em Brasília, com foco principal no lobby com parlamentos evangélicos. A outra foi a Global Kingdon Partnership Network (GKPN), cuja ação se dá abaixo do sinal de radar na mídia, e busca envolver, integrar e unir os que ela considera os principais pastores evangélicos no Brasil.
Sem nenhuma historicidade no contexto do cristianismo, os neopentecostais guardam alguma relação, na verdade, daquilo que foram as cruzadas e as inquisições. Na realidade, vamos encontrar algumas determinantes parecidas com as ideias do reconstrucionismo cristão calvinista.
Os discursos das lideranças representativas dessa teologia são misóginos, xenófobos, racistas, na realidade, contra o que é plural à democracia. Na realidade, Jesus esteve à margem do poder que esses ditos “cristãos” buscam estabelecer no Brasil, fato que contraria frontalmente os princípios fundados no amor.
A Teologia do Domínio não se sustenta em nenhum ensinamento de Jesus expresso no Novo Testamento. Sua mensagem, longe de ser dirigida aos poderosos de então, era concebida exaltando os pobres que hoje são objeto de violência pelos adeptos dessa excrescência chamada de Teologia do Domínio. Vamos à parábola dos convidados para as bodas (Mt, 22 e Lc, 14), quando os convidados pelo rei não compareceram e, irritado, o rei enviou seus servos às encruzilhadas e mandou convidar para as bodas todos que fossem encontrados. O salão do banquete se encheu de mendigos, ou seja, os desapegados das questões mundanas, como o poder, os bens terrenos, os aleijados, os cegos, os coxos. Ninguém é indispensável no banquete do reino de Deus.
Ernest Renan (1823-1892), escritor, filósofo, teólogo, filólogo e historiador francês, o primeiro a escrever sobre Jesus histórico e cuja obra – Vida de Jesus – figurou no index da Igreja Católica, afirma: “(...) O Deus de Jesus não é o déspota injusto que escolheu Israel para seu povo e o protege de todos contra todos. É o Deus da Humanidade. Jesus não era um patriota como os Macabeus, um teocrata como Judas, o Gaulonitta. Elevando-se habilmente acima dos preconceitos de sua nação, ele estabelecerá a universal paternidade de Deus. O Gaulonoita sustentava que é preferível morrer a dar a outro senão Deus o nome de “Senhor”; Jesus deixa esse nome a quem quiser tomá-lo e reserva para Deus um nome mais doce. “(...) o verdadeiro reino de Deus que cada um carrega no coração.”
O oportunismo dos políticos revela a forma simplista como o tema está sendo tratado, não entendem que ao se considerar uma “guerra espiritual”, fica explícito que a política fracassou. Isso está no livro de Edir Macedo.
Crível, portanto, é que as “religiões”, como fenômeno social na concepção pestalozziana, estão mortas e as seitas abundam. Os neopentecostais crescem e há um encolhimento no meio católico. Contudo, cresceu a quantidade dos considerados “sem religião”, e os evangélicos nominais ou desigrejados, sem vínculo eclesiástico.
O cenário brasileiro é inquietante. A Frente Parlamentar Evangélica no Congresso já possui 228 integrantes e a tendência é aumentar. A “religião” sob cuidados paliativos e a política se deslegitimando; corre-se o risco de uma comoriência entre as duas e a implantação de uma teocracia no Brasil.
O poder (Teologia do Domínio) e a riqueza (Teologia da Propriedade), elementos do capitalismo que têm em sua essência a corrupção, vêm atraindo para espaços neopentecostais milícias, narcotráfico, fascismo. Sem fiscalização do Estado e uma criticidade da sociedade, as ideias de Gary North evidenciam-se em um verdadeiro “banditismo religioso.”
Referências:
DIP, Andrea. Em nome de quem? Rio de Janeiro: ABDR, 2018.
DUSILEK, Sérgio e MARIA, Tayná L. A noiva sob o véu. Rio de Janeiro: Menocchio, 2024.
MACEDO, Edir. Plano de poder. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008.
PASTORINO, Carlos T. Sabedoria do evangelho – vol. 5. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1968.
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. São Paulo: Martin Claret, 1995.
Situação indiscutivelmente aterrorizante, que parece ter estiolado as mentes de todos. Doris Gandres
ResponderExcluirMuito preocupante mesmo tudo isso. Só vejo como alternativa a mobilização firme em todas frentes , como foi no caso da PL sobre aborto. Vou repassar esse texto.
ResponderExcluirGratidão pelos comentários. A situação realmente, caríssima Doris e aterrorizante e pede vigilância permanente de toda a sociedade. A coisa está só no começo. Jorge Luiz
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