Por Jorge Luiz
Franz Kafka (1883-1924), considerado um dos escritores mais influentes do século XX, em seu conto “O Artista da Fome”, de 1922, são trazidas muitas questões reflexivas para os dias atuais.
Kafka narra a vida de um homem reconhecido pela sua capacidade de jejuar. Os “artistas da fome” ficaram na história da Europa e da América, quando fizeram muito sucesso. Houve seu início no século XVII, atingindo seu ápice por volta do ano 1880. O jejum durava 40 dias, talvez inspirado pelo jejum de Jesus (Mt, 4:1-11; Lc, 4:1-13; Mc, !:12-13), submetido ao encarceramento em uma jaula, onde era visitado por público pagante, liderado por seu empresário. O jejuador mostrava-se insatisfeito pela duração do jejum, já que seu desejo era permanecer por mais tempo. Alheio aos diversos elogios e críticas dos visitantes, o jejuador, na realidade, não via nada de extraordinário, já que a tudo que realizava era em decorrência da inapetência aos alimentos.
Kafka possibilita ao leitor, nessa interação entre o jejuador e os diversos interesses que atraíam os visitantes, sentimentos de: pobreza espiritual, asceticismo, futilidade e alienação do artista moderno.
Diferente do tempo artista de Kafka, os supostos cristãos da contemporaneidade são convidados por seus pastores a jejuar com o propósito de que a ira de Deus alcance a quem são direcionadas as intenções do jejum.
O jejum de Jesus, por quarenta dias e noites no deserto da Judeia, após o batismo de João Batista, não considera esse tipo de apelo. O jejum foi introduzido na liturgia católica nas comemorações da Semana Santa, presente a morte de Jesus.
A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, recentemente, em primeira votação, um projeto de lei que prevê multa de R$ 17 mil a quem descumprir determinados requisitos sobre doação de alimentos a pessoas em situação de rua na capital. A lei estabelece regras tanto para ONGs e entidades quanto para pessoas físicas.
A fome entrou em declínio como arte, mas não a fome como tragédia humana das civilizações. E o jejum assume nova feição dentro do fundamentalismo religioso com perfil político.
Nos dias atuais, a fome é o retrato de um sistema planetário profundamente disfuncional quando olhamos para a abundância que ele produz e a sua incapacidade de promover uma distribuição dessas riquezas com os que as produzem.
Nas sociedades pré-capitalistas, a fome foi quase sempre da destruição dos produtores diretos ou dos meios de produção, ocasionada por desastres naturais ou catástrofes sociais.
A fome não é um fenômeno natural, ela decorre na forma em que se organiza uma sociedade socioeconomicamente, estruturada hierarquicamente em classes onde se evidencia um modelo de exploração e opressão de uma classe sobre a outra, que são fundamentalmente antagônicas.
Paradoxalmente, o modelo de reprodução em forma-mercadoria, no qual o capitalismo se desenvolve, a produção é infinitesimal, isso inclusive na produção de alimentos, e é nessa mesma intensidade que se produz a miséria. É a escassez no meio da abundância. O mundo desperdiça algo em torno de um bilhão de refeições todos os dias. Giovanni Alves, professor livre-docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista, sobre esse aspecto, considera: “A ideia da “escassez em meio à abundância ou à ideia da pobreza em meio à riqueza abundante das mercadorias sempre foi um traço saliente do desenvolvimento do modo de produção capitalista.”
A produção de alimentos no mundo é comprovadamente suficiente para alimentar toda a sua população. A fome é uma das principais contradições do sistema capitalista. O corpo humano necessita de vários nutrientes, principalmente na infância, para que haja bom desenvolvimento físico e mental, caso contrário, surgirão várias consequências, entre as quais a desnutrição, principal vilã e causadora de mortes prematuras e perfeitamente evitáveis de crianças. O indivíduo submetido à fome terá um quadro de saúde incompatível com as demandas de produção do próprio sistema capitalista, sendo inviabilizado no mercado de trabalho pela falta de competitividade desse sistema. Naturalmente, deverá recorrer às políticas públicas para sobreviver, bem como sua família. A questão se agrava quando esse mesmo sistema é contra as políticas assistenciais, o que fatalmente o levará à morte.
Há um vínculo sutil, diz Alves, entre o desenvolvimento da “escassez social” do capital na abundância e a necropolítica protagonizada pelas forças políticas neoliberalistas.
O judaísmo, tendo na Torá a Lei da Pureza, tinha uma relação muito consistente na divisão da sociedade entre puros e impuros, portanto, o convívio à mesa constituía a expressão central das relações à época. Os evangelistas apontam muitos conflitos que Jesus enfrenta diante da tradição. Jesus é admoestado (Mc, 2:16) por comer e beber com os que eram considerados impuros – cobradores de impostos e pecadores.
O jejum e a fome aparecem também em outros momentos. Acerca do jejum, diante do fato de os fariseus jejuarem e os discípulos de Jesus não, ele é indagado sobre os motivos de isso não acontecer. Jesus responde: “Podem os convidados para o casamento jejuar enquanto está com eles o noivo. (...)”. O jejum, portanto, estava no contexto das tradições do judaísmo.
Em outro momento, ele se posiciona quanto à proibição do trabalho aos sábados, quando certa feita seus discípulos foram vistos pelos fariseus a colher espigas de milho (Mc, 2:23-28); Jesus responde de pronto que o “sábado foi feito para o homem e não o homem por causas dos sábados”. Fica claro ao se reportar a Davi que transgrediu a lei para servir pão aos seus soldados, assim, fez para os seus discípulos.
Vê-se que Jesus nessas três passagens focaliza a questão dos alimentos, principalmente quando partilha o pão com os socialmente marginalizados.
Na questão n.º 930, de O Livro dos Espíritos, os Espíritos ressaltam que: “numa sociedade organizada, segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome.”
Para os espíritas, não há nenhum simbolismo acerca do jejum.
O jejum forçado, de milhares de pessoas e crianças que só dispõem de uma refeição diária, e sem uma dieta capaz de possibilitar o desenvolvimento e nem mesmo a capacidade laborativa, atrelada à fome, que mata milhares de pessoas em todo o mundo, são frutos desse modelo de sociedade, disfuncional, onde poucos vivem nababescamente e muitos, miseravelmente. O capitalismo, através da fome, desumaniza e brutaliza o indivíduo. O saudoso antropólogo Darcy Ribeiro definiu bem o capitalismo como “máquina de moer gente”.
O padre Júlio Lancelotti, recentemente, afirmou que saciar a fome de alguém é um ato revolucionário. Sem sombra de dúvidas, essa revolução foi apregoada por Jesus e todo cristão deve se revestir desse caráter revolucionário e lutar por uma sociedade mais equânime.
Ser cristão é ser revolucionário... as igrejas não deixam? Sejamos!
Referências:
KAFKA, Franz. Um artista da fome. São Paulo: Martin Claret, 2001.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. São Paulo: Lake, 2000.
MYERS, Ched. O evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2024/08/18/qual-e-o-custo-social-e-ambiental-do-desperdicio-de-alimentos.htm
Maís um brilhante texto Jorge. Não sabia, por exemplo que para espiritismo não há simbolismo acerca do jejum. Sobre a fome: sejamos sim revolucionários
ResponderExcluirValeu, pela colaboração! JORGE LUIZ
ExcluirQuerido Amigo Jorge, seu texto amplia a visão e aprofunda a crítica às relações sociais capitalistas. Enriquece, mas entristece, também, na medida em que presenciamos o descaso de autoridades eletivas ao desmerecer em a questão da fome. Termo que surge como uma necessidade biológica passa a ser uma questão sociológica da barbárie que é o Sistema de Produção Capitalista. Muito obrigado, vou compartilhar com esmero.😍
ResponderExcluirOlá, Valnei! Gratidão pelo enriquecimento do tema. Estou aguardando suas colaborações. JorgeLuiz.
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