sexta-feira, 25 de outubro de 2024

KARDEC: CÉTICO POR NATUREZA E EDUCAÇÃO

 

Por Jorge Luiz

        Pululam no movimento espírita características da personalidade de Allan Kardec, decorrentes da necessidade de se contextualizá-lo para que os fundamentos da Doutrina Espírita se tornem mais compreensíveis, o que sempre se fez necessário, embora o ranço religioso que o movimento espírita tomou o impedisse. É preciso andar com cuidado nessa direção para que não se desprezem as principais características de Kardec: o de cientista do invisível e de cético por natureza e educação.

            Para Myers (2021), Jon Sobrino atesta que “o acesso ao Cristo da fé só se dá mediante o nosso seguimento do Jesus histórico”. A assertiva serve para os espíritas quanto à fé espírita, em relação à historicidade de Allan Kardec.

             Anna Blackwell, que conheceu Allan Kardec e inclusive traduziu algumas de suas obras para a língua inglesa, ao descrevê-lo, inclusive quanto à estatura física, caracteriza-o como ativo e tenaz, mas de temperamento calmo, precavido e realista até quase à frieza, cético por natureza e por educação, argumentador lógico e preciso, e eminentemente prático em suas ideias e ações, distanciado assim do misticismo e do entusiasmo (WANTUIL e THIESEN, 1984).

Anna Blackwell, amiga pessoal do casal Allan Kardec

             Ceticismo

         O indivíduo cético, para os dias atuais, soa primeiramente como descrente, ou aquele que tem uma atitude negativa sobre o pensamento. Ou, até mesmo, que não se pronuncia sobre nada, sobre qualquer coisa que aconteça, refugiando-se na crítica.

A etimologia da própria palavra vem do grego (skepsis), que significa exame.

           O ceticismo enquanto filosofia consta que foi elaborado por Pirro, por volta dos anos 300, nos distantes século IV e III a.C., que tem em sua gênese que nada nasce do nada. Na mesma época em que apareceram as escolas epicuristas e estoicas, cujos fundadores, Epicuro e Zenão de Cício, nasceram algumas décadas depois. A história do pensamento estabelece relações entre os nomes destas três doutrinas tão divergentes em suas premissas, mas tão convergentes em suas conclusões morais; isto é, na maneira de elas conceberem a felicidade humana. (VERDAN, 1998). O ceticismo, como filosofia, tem um caminho labiríntico através da história do pensamento humano.

             Ceticismo e Cristianismo

         Santo Agostinho é o primeiro filósofo a retomar o pensamento dos gregos e a ter, de algum modo, revivido a experiência da dúvida, ganhando três características novas: a) a dúvida é vivida, quando Agostinho mostra a impossibilidade de separar as funções da alma. A unidade de espírito humano confere a dúvida da dimensão total de um completo desespero; b) ao tempo que é desesperadora e existencial, a dúvida é uma experiência, onde lhe é conferida uma intensa partícula: a dúvida é passageira e dura um momento. Interessante que Agostinho deixa de lado o caráter de exame, e irá assumir com o cristianismo, para uma investigação da verdade, por considerar que a ciência não está no poder de possuí-la; c) ao mesmo tempo que a dúvida constitui uma experiência, ela é, não obstante, também um momento, no sentido dialético, do itinerário filosófico. No itinerário do cristão, a dúvida o marca como o ponto de passagem obrigatório que constitui a permanência no purgatório, a prova necessária do pecado, o encontro das trevas do erro, cuja função revela as insuficiências de uma ciência ateia ou de uma certeza não fundada num Deus garantidor das verdades eternas. A dúvida é, pois, o momento da negação que transforma o saber humano numa certeza fundada na segurança de uma fé divina. (DUMONT, 1986).

             Anna Blackwell e o ceticismo de Kardec

         O século XVIII, conhecido como o “século das luzes”: o pensamento desse século aparece como questionamento geral de todos os sistemas filosóficos elaborados anteriormente, em particular o de René Descartes. Na verdade, há no clima intelectual do século XVIII, uma verdadeira corrente de ceticismo, uma atitude análoga dos antigos pirrônicos em relação à filosofia “dogmatista”.

            A crítica à especulação metafísica e ao cristianismo, tão difundida na época das “luzes”, prosseguiu e se adentrou no decorrer do século XIX. Essas tendências encontram sua expressão mais sistemática na filosofia positivista de Augusto Comte.

            Por outro lado a ciência, concebida como um conhecimento dos fenômenos e das leis que os regem, adquiriu uma autoridade e um prestígio que, aliás, o entusiasmo dos Enciclopedistas pela “filosofia experimental” deixara pressagiar no século precedente. Assim, um verdadeiro dogmatismo científico tendeu a substituir o dogmatismo metafísico ou teológico. (VERDAN, 1998)

            É nesse caldeirão que Allan Kardec reencarnou, com uma herança espiritual, pelo menos naquilo que nos é possível saber, além da do sacerdote druídico, que a utiliza como pseudônimo, Jan Huss, educador e reformador tcheco, que foi o grande precursor da reforma Luterana, condição que se revela logo nos seus 15 anos, quando aspirava uma reforma religiosa, segundo Maurice Lachâtre.

             Kardec, o fenômeno espírita e o ceticismo

A primeira notícia que Kardec obteve sobre os fenômenos das mesas girantes ocorreu com o Sr. Fortier, em 1854, quando de pronto mencionou: “É com efeito muito singular, respondeu: mas, a rigor, isso não me parece radicalmente impossível. No segundo encontro, o Sr. Fortier acrescentou que as mesas respondiam, interrogadas; Kardec disse: “Só acreditarei quando o vir e quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que possa tornar-se sonâmbula. Até lá, permita que eu não veja no caso mais do que um conto para fazer-nos dormir em pé.”

No primeiro e real contato com o fenômeno das mesas girantes, ele concluiu que “naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, foi tomada a estudar profundamente.”

Kardec, como ele mesmo afirma, aplicou à nova ciência o método experimental que sempre se utilizara, nunca elaborando ideias preconcebidas, e observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências; dos efeitos remontava às causas, por dedução e encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação, senão quando resolvia todas as dificuldades em questão. São explícitas nesses primeiros momentos, em sua personalidade, as características definidas por Blackwell que figuram no título do presente artigo.

Um outro momento revelador, cujos alguns espíritas ainda padecem dessa conclusão, é que os Espíritos, nada mais sendo que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral, que os saberes se circunscreviam ao grau que haviam alcançado de adiantamento, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. Kardec, nessas conclusões, protegeu-se de formular teorias prematuras, tendo por base o que fora dito por uns ou alguns deles. Para ele, os Espíritos foram, do menor ao maior, meios de informação e não reveladores predestinados. Tais disposições, como ele mesmo afirma, empreenderam em seus estudos e neles prosseguiu sempre. Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente seguiu.

Educador por excelência, a princípio se utilizou do contato com os Espíritos com o propósito de se instruir, ao perceber que tudo tomava o corpo de uma Doutrina, e resolveu publicar os ensinos recebidos que constituíram a base de O Livro dos Espíritos (KARDEC, 1987).

Desconhecido dos espíritas, contexto que se inclui esse mediano resenhista, na ânsia de torná-lo conhecido, repito, o seu caráter de cientista vem sendo tomado, em alguns momentos, com defeitos, maculando a sua denodada dedicação, seu singular devotamento e a ausência de espírito de sistema, o que contraria os que o acusam de positivista, pelo contexto descrito acima, ou até mesmo, pelo aceno exagerado ao catolicismo.

Kardec não apela para as excentricidades, e ao se esconder em um pseudônimo, não denuncia pusilanimidade, mas sim a sensatez que o caracteriza.

 

 

Referências:

DUMONT, Jean-Paul. Ceticismo.  Encyclopédia Universales. Tradução de Jamir Conte. França, 1986.

INCONTRI, Dora. Para entender Kardec. São Paulo: Lachâtre, 2004.

KARDEC, Allan. Obras póstumas. Brasília: FEB, 1987.

VERDAN, André. O ceticismo filosófico. Santa Catarina: UFSC, 1998.

WANTUIL, Zeus e THIESEN, Francisco. Allan Kardec: pesquisa bibliográfica e ensaios de interpretação. Vol. III. Brasília: FEB, 1987.

 

Um comentário:

  1. Este é um dos principais pontos que falta ao grande público espírita, espíritas e não espíritas. Trilhamos um espiritismo institucional que nos afasta da criticidade, da História e das outras Ciências que colaboram com o trato da consciência humana. Parabéns Querido Amigo, fique em Paz.

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