terça-feira, 22 de outubro de 2024

O ESPIRITISMO COMO "TÁBUA DE SALVAÇÃO DA HUMANIDADE" - PARTE II

 

Por Valnei França

            O que é religião? Uma invenção, construção cultural em dois sentidos. Um, o teórico, vinculado às definições acadêmicas e nominadas em suas comunidades. A outra, é a histórica, que é um sentimento que vive, surge no indivíduo, e se completa no grupo social quando este é homogêneo em “forma e conteúdo”. Este segundo, é um modo de ver, perceber, sem necessariamente conceituar ou se prender a um termo, uma palavra.

             Por que histórica? Porque surge espontaneamente, “não sei de onde”, mas que está presente em todos os agrupamentos sociais que se tem conhecimento. Ao nos despirmos do academicismo, podemos ver, ou deduzir, “o como” os Humanos passaram a ver, e sentir, algo seu além de sua noção de pertencimento, sua realidade. Este algo exterior é sentido como sendo seu, sua exteriorização do medo do desconhecido, do agradecimento, do reconhecimento por uma caça, pesca ou colheita. Hoje, são reconhecidos como sentimentos e atos vinculados ao “sagrado”, mas não vamos conceituar, ficaremos no sentimento de “complementaridade”, aquilo que o Ser Humano sente independente de ser, ou se entender, como religioso. Como exemplo temos o ateu, que possui este sentimento de complementaridade.

             Agora avançamos mais um pouco. Este sentimento fazendo parte constituinte da estrutura do Humano é natural, tal qual o atributo de “humano em si”. Ambos possuem a mesma natureza. Assim, podemos fazer uma leitura histórica, de forma que possamos identificar o “movimento” deste sentimento. Ao perceber-se como constituinte do “meio natural” que o cerca, o Humano passa a nomear e se relacionar com elementos e eventos naturais, tais como, rios lagos, cachoeiras, árvores, montanhas, vulcões, matas, florestas, o mar e outros elementos, como também como eventos, erupções, trovões, raios… Nestes, a relação entre a Natureza e os Humanos é simbólica e complementar, pois o Humano acredita que faz parte, que é Natureza, mesmo não dominando ações desta. “Esse é o ponto: sentir as energias da natureza, esse pertencer à natureza, terra, mata, ar, rios, mares, pássaros, aos bichos… Esse sentimento de pertencimento, de não ser antropocêntrico”, (Veiga, 2024)(7). É a relação de domínio, ou não, de eventos naturais que, gradativamente, vai-se construindo uma maneira, um rito de lidar com a Natureza e suas incertezas. Esta vai se constituindo em benefício, ou ameaça, e as relações “humano natureza” vão saindo do sentimento de complementaridade, o pertencimento é transformado em uma imposição ritual, artificial, externa ao Humano. O sentimento de pertencimento não vai do humano para o exterior, para a Natureza, mas no sentido inverso, a artificialidade construída passa para uma imposição cultural, política, militar ou como alguns costumam se referir, religiosa. Aquele Humano começa a ver a Natureza pelos “olhos dos ritos”, de quem os dirigem, e porque não dizer, de quem os dominam. A criação do rito, expressão artificial do sentimento de complementaridade, embota a relação natural, mas não a elimina, pois vimos em todos os momentos da História Humana exemplos e exemplos de indivíduos e/ou grupos sociais que rompem essa artificialidade, este embotamento, e expressam a complementaridade de forma natural. Podemos até dizer mais pura em relação às artificialidades construídas no percurso da Humanidade. Como os “movimentos pauperistas”. “Nesse contexto, dentre os movimentos pauperistas, encontrarmos uma comunidade de mulheres leigas que receberam o nome de beguinas e suas comunidades denominavam-se beguinarias 6 (Begijnhof em neerlandês)”(8). 

A antropologia oferece, assim, uma versão positiva de uma natureza humana dupla: se a educação tem por função disciplinar no homem sua natureza inicial, selvagem, corrompida, dominada pela paixão e pelo capricho, é para que ele possa ascender à forma superior de humanidade, a do espírito, da razão, da alma liberta do pecado ou do cidadão republicano. A disciplina é a vertente repressiva daquilo que, em sua vertente “realização”, dá acesso ao ápice da humanidade (a Razão e a República, ou na versão religiosa, a salvação” (Grifo nosso). (Charlot, 2020, p. 32)(9).                  

            Os Povos Originários compreendem a Natureza e seus fenômenos como uma extensão de si mesmos.

             Observando as religiões e seus “ritos”, estatutos, podemos destacar dois movimentos que são antagônicos entre si. a) O movimento “para o exterior”, esse se caracteriza pelos seus atos, gestos, movimentos corporais. A exteriorização da fé pode ser uma forma de divulgação, identificação de determinadas religiões. b) O movimento “para o interior”, esse se caracteriza num processo de desenvolvimento do “eu interior”, do indivíduo como depuração do “eu” (corpo e alma). A vida é colocada como produtora de ensinamentos a serem apreendidos. Ainda podemos citar a síntese, quando ambos os movimentos se fundem num único processo de evolução da espiritualidade do indivíduo.

             Os movimentos, exterior e interior, enquanto processo de realização/organização da fé, podem ter dois resultados interessantes. Um a conscientização do indivíduo de que depende “de si” o seu aperfeiçoamento moral e não apenas do gestual da fé, sua exteriorização. Ou, na pior condição e mais verificável, a completa alienação entre seus atos e o processo de depuração de sua espiritualidade. Isto acontece quando na balança a aparência se sobressai à essência resultando, ao indivíduo, o abandono das diretrizes básicas de aprimoramento moral e, mesmo ainda, na prática como negação dos postulados da sua própria religião. Quando os Evangélicos, cuja referência lembra o Evangelho, e na prática se baseiam muito no Antigo Testamento, onde se justifica riqueza, violência, a vingança, e, que em boa parte, negam os 10 Mandamentos. Outro resultado deste tipo de alienação é  fanatismo religioso(10).

             Ao olharmos a História, verificamos que a religião foi o primeiro “estatuto social”, as primeiras normas de condutas dos grupos sociais. Eles regulavam as relações sociais bem como determinavam punições aos desvios de conduta. A fé e a política, normatizaram o desenvolvimento dos grupos sociais e sociedades.

                   As pessoas introjetavam estas normas de uma forma quase naturalizada, cultural. Onde o processo de tomada de “consciência de si” é fundamental para a questão de pertencimento a um grupo ou sociedade, determinados. Quando, a força política é de incorporação, sua negação pode resultar em exílio, suplício ou mesmo a morte. Essa é a falta de consciência plena do processo “para si”. Essa falta do processo de “consciência para si”, no ato ou exercício da fé, possibilitou o controle da “vida cotidiana”, passando as pessoas a agirem e pensarem mais como apêndice dos poderes militares e religiosos. Isto, praticamente, impossibilitava que as pessoas conscientes, livres, agissem com autonomia e divergissem sobre o que se considerava certo ou errado. Eram os  detentores do poder, militar e/ou religioso, quem pensavam e decidiam sobre isso.

             As formas de controle, vigilância e punição, foram se aperfeiçoando com o aumento da quantidade de grupos sociais e a formação de sociedades cada vez mais diversas e complexas. Muitos dirigentes e autoridades religiosas, passaram a dar mais valor à obediência, às artificialidades de gestos e comportamentos do que o aprimoramento moral, principalmente na seara cristã, por exemplo.

 

E que finalmente o que preside a todos esses mecanismos não é o funcionamento unitário de um aparelho ou de uma instituição, mas a necessidade de um combate e as regras de uma estratégia. Que, consequentemente, as noções de instituições de repressão, de eliminação, de exclusão, de marginalização, não são adequadas para descrever, no próprio centro – da cidade carcerária, a formação das atenuações insidiosas, das maldades pouco confessáveis, das pequenas espertezas, dos procedimentos calculados, das técnicas, das “ciências” enfim que permitem a fabricação do indivíduo disciplinar. Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de “encarceramento”, objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha. (Foucault, 1977, p.269)(11)

             - O que vemos hoje?

            São comportamentos e gestos que refletem a força da relação com os dirigentes religiosos, sendo que estes nem sempre estão seguindo suas matrizes religiosas. Podemos identificar dois aspectos distintos, nas religiões: a) artificialidade; e b) religiosidade. Ambos coexistem numa mesma religião. Um exemplo é o fanatismo, a forma mais radical da artificialidade; o outro, é o da espiritualidade que, quase imperceptível, nutre as ações da humanidade. Sobre os conceitos de religião, religiosidade e espiritualidade Gomes (2014)(12), nos diz

Compreende-se que são experiências inseparáveis, uma vez que uma dimensão complementa a outra e todas elas remetem a pessoa para a relação com o transcendente na busca de significados da vida. Cada uma dessas dimensões revela sua peculiaridade tendo em vista a experiência de cada indivíduo. (Gomes, 2014)

                       Voltemos um pouco para a Religião. A visão Tradicional coloca a Família como ponto central para o trabalho de aprimoramento da pessoa. É, em certo sentido, um pensamento que responsabiliza um coletivo na busca da salvação. Aqui, podemos colocar a Reforma que cria o rompimento deste pensamento e coloca no indivíduo, exclusivamente, a responsabilidade pela sua salvação. Isto, vem dá suporte, posteriormente, ao “pensamento liberal”. Importa que tanto uma como a outra, forma de salvação, está circunspecta no arcabouço de mesma origem e final da vida, ou melhor, tanto o corpo quanto à alma são criados simultaneamente – nascimento e morte, além de um complexo caminho entre a pureza de um Céu, ou Reino e o Inferno. A partir da Reforma teremos duas formas de conceber e agir no cotidiano, uma já consolidada e a outra, a protestante, se formando a partir das novas relações sociais emergentes.

            É em meio a este conflito ideológico entre origem, atuação, meta, e objetivos da salvação, que surge o Espiritismo. Ele amplia a existência da alma/espírito para além do nascimento e da morte, fora mesmo do Planeta Terra e, ainda, de condicionar “um ritmo de elevação, ou aprimoramento, espiritual” à conduta do “espírito encarnado”. Rompem-se a temporalidade terrena e assumindo a reencarnação, não uma vez, mas tantas quantas sejam necessárias para o espírito se “depurar moralmente”. (Livro dos Espíritos, 1995, p. 95-99)(13)

            Paulo Freire, disse que a criança que entra na sala de aula já traz uma “bagagem cultural”, saberes. Já Herculano Pires nos alerta que uma criança é um “espírito reencarnado”, ou seja, possui uma “herança espiritual” (França, 2023)(14). Ou até podemos chamar de “cultura espiritual”. Podemos inferir que “o Ser em formação”, na Escola, Família, Igreja, enfim numa instituição, precede de conhecimentos, saberes, que precisam ser relevados.

É preciso não esquecer que as crianças são espíritos reencarnados, espíritos adultos que se vestem, como ensina Kardec: “com a roupagem da inocência” para voltarem à Terra e iniciarem uma vida nova. (Pires, p. 17, 1990)(15)

            Um dos princípios básicos do Espiritismo, a “Pluralidade das Existências”, traz para o cotidiano – outra vez, a responsabilidade de “elevação espiritual”(16) condicionada às “relações sociais”. É com “o outro” que se forja ou não as condições para uma “elevação espiritual”. Pois, é na Sociedade, e/ou grupo social, que o “espírito encarnado” tem a oportunidade de frear a influência da matéria, principalmente nas questões que envolvam “orgulho, vaidade e egoísmo…”. Sozinho ou isolado, não são criadas as oportunidades deste enfrentamento. Podemos, também, inferir que a Doutrina Espírita é em essência uma proposta de sociabilidade. No sentido de que o espírito precisa desenvolver “uma alteridade” em relação ao “outro”, ao “grupo social”, à “Sociedade”, ao “Mundo”. Todos têm a necessidade e a responsabilidade de evoluir e auxiliar na evolução da Humanidade” como um todo.

A inteligência é rica de méritos para o futuro, mas sob a condição de ser bem empregada. Se todos os homens que a possuem dela se servissem de conformidade com a vontade de Deus, fácil seria, para os Espíritos, a tarefa de fazer que a Humanidade avance. (Kardec, 2013, p. 121)(17) 

             Por extensão, podemos dizer que se na visão religiosa da “salvação cristã”, tínhamos numa o coletivo família e na outra o indivíduo. Já o Espiritismo coloca a responsabilidade de “aprimoramento” do espírito nas suas relações sociais com a Sociedade como um todo, ao passo que sua elevação(18) será individual.

 O aprimoramento espiritual é social,

enquanto a elevação espiritual é individual.

             O Espiritismo é uma Doutrina que segue, dá continuidade, ao conhecimento europeizado, tanto é que nas questões relativas às outras culturas, há controvérsias. E isto é salutar, pois o próprio “decodificador” orienta que o Espiritismo deve seguir a Ciência e, em casos de conflitos posteriores, segue-se a Ciência e modifica-se os pontos conflitantes na Doutrina. Elias Morais aborda brilhantemente esta relação do Espiritismo com a Ciência. (Capítulo 8, a ciência como parâmetro, p. 90-91; e Capítulo 24, a retomada da Ciência no Espiritismo, p. 237-243)(19).

 

1.         Voltemos ao cotidiano usando a Educação. Se o Espiritismo se coloca como solução de futuro, a partir de quais ações devem ser pautadas o agir no cotidiano? Que intenção Antropológica o Espiritismo visa formar, o “tipo de ser humano, ou melhor o cidadão” quer criar, projetar?

2.         Sendo o cotidiano a seara do “bom proceder”, ou seja, o locus onde se realiza ou não as relações sociais que possam propiciar o aprimoramento do espírito, quais as ações e/ou orientações mais assertivas para que se obtenha êxito em cada encarnação? Como e para onde olhar no sentido de atuar com seu altruísmo?

3.         Num Planeta de “Expiações e Provas” como discernir as necessidades sem a “trave no olho”, sem a tentação de “olhar no quintal do vizinho”?

4.         Considerando as relações sociais como condicionantes do aprimoramento espiritual, quais suas relações com o exercício do poder?

5.         A Doutrina Espírita não preconiza hierarquias, tipo “eu mando você obedece”, mas uma condição de elevação diferenciada, onde quem está numa condição mais aprimorada possui uma extensão de visão e atuação, bem como de  responsabilidade, maior que os que possuem uma condição menos aprimorada. O senso comum hierarquiza. É fato que as culturas se intercambiam e as práticas do Espiritismo no Brasil, neste caso, demonstram uma hierarquização artificial, a contraposição como subversão ou tentativa de “acabar, extinguir o Espiritismo no Brasil”. Um dos instrumentos criados para controle do Espiritismo no Brasil foi o Pacto Áureo(20). É comum as Instituições Espíritas assumirem normas, jeitos, e trejeitos, administrativos no trato com o espiritual.

 

 

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